14 de dezembro de 2004

Eu e o Cinema: algumas pérolas cinematográficas - por Filipe Lopes (PARTE I)


"Não sei a quem é que tu sais!", costumava a minha mãe dizer-me, com um sorriso de preocupação a sair-lhe dos lábios, quando eu tinha cerca de dezasseis anos, referindo-se à minha compulsiva vontade de ver filmes. De todo o tipo, mas acima de tudo, segundo a opinião dela - sublinho que era segundo a opinião dela e acho ser daí que provinha o tal esgar de preocupação -, de filmes de terror. Por um lado, penso que ela partilhava um pouco da minha alegria ao ver-me tão divertidamente interessado nessas coisas do cinema, por outro, temia que eu viesse a degenerar e me tornasse num daqueles psicopatas com cutelos e machados que pululavam nas fitas do género. Ou que me transformasse num vampiro à laia do Drácula ou do Nosferatu, sei lá! Bom, mas cedo compreendeu que podia ficar descansada quanto a essa questão, já que eu gostava dos filmes de terror tal como gostava dos outros, de todos os outros géneros, do 'western' ao drama, da comédia ao filme negro, do 'thriller' à animação ou à ficção científica. Mais tarde veio a comprovar que eu não me transformei no horripilante assassino da moto-serra. Acho que ficou contente!
Apaixonei-me pelo cinema quando ainda era criança. Na aldeia da minha avó existia uma associação recreativa, onde por vezes um projeccionista itinerante assentava arraiais com a sua velhinha máquina de 16mm. Os primeiros filmes que vi projectados foram, por essa altura, algumas curtas-metragens nas quais aparecia a inconfundível e mítica imagem do Charlot. Aquela figura pequenina com uma divertida forma de andar, que usava bigodinho, bengala e chapéu de coco, ficou-me para sempre na memória. Hoje, quando (re) vejo alguns filmes do Charlie Chaplin, a primeira coisa que me vem à memória é aquela sensação que tive quando era miúdo ao ver "O Garoto de Charlot" (1920) - a de uma pureza absoluta, ou a de uma ingenuidade imaculada, própria de quem está a presenciar e sentir algo pela primeira vez. Chaplin foi um grande realizador. Um dos maiores de todos os tempos. A prová-lo estão títulos como "A Quimera do Ouro" (1925), "Tempos Modernos" (1936), "O Ditador" (1940), ou "Luzes da Ribalta" (1952), apenas para dar alguns exemplos.
Acho que cresci fascinado pelo cinema da mesma forma que a criança de "Cinema Paraíso" (1988), de Giuseppe Tornatore. Para mim, aquele projeccionista que ia à aldeia da minha avó era um mago que trazia novos mundos e sonhos na bagagem para me oferecer. Graças a ele, fui o Zorro, o Robin dos Bosques, o Hércules e o Tarzan vezes sem conta, bem como o 'cowboy' mais rápido e com mais pontaria do Velho Oeste Americano. Ah! O Velho Oeste Americano! Teria, talvez, os meus oito anos, quando vi o "Shane" (1953), de George Stevens, pela primeira vez. E aí fui o rapazinho que segue de olhos lacrimejantes a partida do antigo pistoleiro transformado em herói solitário rumo ao horizonte. Um dos géneros que eu mais adorava, na época, era o 'western' e este filme foi o que abriu as portas para todos os outros que armazeno carinhosamente no meu baú de recordações, como "Rio Vermelho" (1948) ou "Rio Bravo" (1959), se falar em Howard Hawks, assim como "A Desaparecida" (1956), ou "O Homem Que Matou Liberty Valance" (1962), se me lembrar de John Ford. Aliás, estes dois realizadores pertencem, hoje, ao conjunto daqueles que eu mais admiro, mesmo noutros géneros cinematográficos. Lembrar-me-ei sempre de "As Vinhas da Ira" (1940) e de "O Vale Era Verde" (1941), como obras-primas absolutas que Ford nos deixou, tal como não me esquecerei jamais de "Paraíso Infernal" (1939), "Scarface - O Homem da Cicatriz" (1932) ou "Os Homens Preferem as Louras" como alguns dos legados mais importantes de Hawks à História do Cinema.
Voltando ao 'western', não é de estranhar que John Wayne seja uma presença quase constante nos filmes que referi (à excepção de "Shane", Wayne entra em todos); ele é, de facto, para mim a figura do 'cowboy' por excelência. E era ele quem eu imitava, mesmo não fazendo a mínima ideia de quem era, nas minhas brincadeiras de criança. 'Johnny Guitar' (1954), de Nicholas Ray e, mais recentemente, Silverado (1985), de Lawrence Kasdan, e "Imperdoável" (1992) de Clint Eastwood, fazem, também eles parte, em conjunto com mais duas dúzias de títulos, da prateleira dourada da minha memória. Seria, no entanto, escandaloso (sem qualquer ponta de exagero), esquecer-me de mencionar o tantas vezes mal amado italiano 'western spaghetti', por intermédio da figura magistral de Sergio Leone e de alguns dos seus filmes, com particular ênfase para "Aconteceu no Oeste" (1968) e para a trilogia iniciada com "Por Um Punhado de Dólares" (1964), seguida por "Por Mais Alguns Dólares" (1965) e terminada com chave de ouro através do excepcional "O Bom, o Mau e o Vilão" (1966). O protagonista destes três últimos foi outro grandioso senhor do cinema, Clint Eastwood, também ele um actor com lugar destacado no 'western' e que encarnou como ninguém a figura do justiceiro que é um cavaleiro solitário.
Mas foi aos treze anos, sensivelmente, que descobri ser o cinema a arte que eu mais adorava. O filme que provocou essa aproximação, no sentido de me levar a procurar outras coisas para ver e para ler, ou seja, para saciar a minha cada vez maior sede de conhecimento, foi "Laranja Mecânica" (1971), de Stanley Kubrick. Confesso que vi sem que ninguém, com poder para mo impedir, soubesse. Já sabia que todos diriam que não era um filme para a minha idade, tanto mais que o meu pai o tinha visto na altura da estreia em Portugal, lá para fins de 1974, princípios de 1975 e tinha ficado muitíssimo mal disposto com a sua violência, tanto a latente como a que era mostrada. Para um jovenzinho nos primórdios da adolescência, há melhor apresentação do que esta para ver o filme, sem sequer pensar em mais nada que não no simples prazer da transgressão? É óbvio que nada me tinha preparado para o que iria seguir-se e levei um violentíssimo murro no estômago por causa da minha teimosia, mas valeu a pena. A ideia subversiva que Kubrick transpõe para o grande ecrã, transformando um terrível e cruel criminoso em vítima da sociedade é, simplesmente, sublime. Claro que, com treze anos, embora já com uma relativamente longa jornada de filmes de terror vistos na televisão às sextas-feiras à noite sem que ninguém desse por isso, a percepção que eu tive do significado daquelas imagens não foi tão rebuscado. Isso só veio com o tempo, com o meu conhecimento das coisas do mundo, com os livros que li, com as pessoas com quem falei e com a numerosa quantidade de vezes que o revi. É incrível o que o Cinema pode fazer por nós!
Stanley Kubrick passou a ser, a partir dessa altura, o meu realizador preferido. O seu cinema enchia-me (e enche-me) verdadeiramente a alma! São poucos os realizadores que podem dar-se ao luxo de dizer que foram geniais em quase todos os géneros pelos quais passaram. Kubrick foi (é!) um deles. De "2001, Odisseia no Espaço" (1968), na Ficção Científica, a "Barry Lyndon" (1975), no Filme de Época, passando por "Shining" (1980), no Terror, "Doutor Estranhoamor" (1964), na Comédia, ou "Nascido Para Matar" (1987), no Filme de Guerra, toda a sua carreira está assente em pilares muitíssimo sólidos e praticamente indestrutíveis. Um génio!
Depois de "Laranja Mecânica", como há pouco referi, a minha paixão pelo cinema cimentou-se e a minha sede de conhecimento sobre a matéria cresceu como uma progressão geométrica. A partir daí, meus caros leitores, não sendo comedido no adjectivo a utilizar, foi o descalabro! Porque, se ver filmes custa dinheiro, comprar livros sobre a matéria tem um custo incomportável para uma bolsa de um miúdo que ainda não tem idade para trabalhar. Felizmente tive a ajuda de amigos, que me emprestavam muitas coisas e me ajudavam a seleccionar o que era importante. Foram largas centenas, os filmes que vi e os realizadores que tenho como referência. Citarei apenas alguns. Nunca se sabe… pode ser que esta "pequena" lista sirva para alguém que goste de cinema e queira andar à procura de algum que ainda não tenha visto…



ALGUNS DOS FILMES DE QUE MAIS GOSTO

Dario Argento
SUSPIRIA (1977)
INFERNO (1979)

Ingmar Bergman
MORANGOS SILVESTRES (1957)

O SÉTIMO SELO (1957)
A FONTE DA VIRGEM (1960)

Tim Burton
BATMAN (1989)
EDUARDO MÃOS DE TESOURA (1990)
BATMAN REGRESSA (1992)
ED WOOD (1994)

Frank Capra
UMA NOITE ACONTECEU (1934)
O MUNDO É UM MANICÓMIO (1944)
DO CÉU CAÍU UMA ESTRELA (1946)

Charles Chaplin
O GAROTO DE CHARLOT (1920)
A QUIMERA DO OURO (1925)
O DITADOR (1940)
LUZES DA RIBALTA (1952)

Francis F. Coppola
APOCALYPSE NOW (1979)
JUVENTUDE INQUIETA (1983)
O PADRINHO (I, II e III)
DRÁCULA DE BRAM STOKER (1992)

Michael Curtiz
O CAPITÃO BLOOD (1935)
AS AVENTURAS DE ROBIN DOS BOSQUES (1938) co-realizado com William Keighley
CASABLANCA (1942)

Jonathan Demme
O SILÊNCIO DOS INOCENTES (1991)

Sergei Eisenstein
O COURAÇADO POTEMKIN (1925)
ALEXANDRE NEVSKI (1938)

David Fincher
SE7EN - SETE PECADOS MORTAIS (1995)
CLUBE DE COMBATE (1999)

Victor Fleming
A ILHA DO TESOURO (1934)
O FEITICEIRO DE OZ (1939)
E TUDO O VENTO LEVOU (1939)
O MÉDICO E O MONSTRO (1941)

John Ford
AS VINHAS DA IRA (1940)
O VALE ERA VERDE (1941)
A DESAPARECIDA (1956)
O HOMEM QUE MATOU LIBERTY VALANCE (1962)

Milos Forman
VOANDO SOBRE UM NINHO DE CUCOS (1975)

Jean-Luc Godard,
O ACOSSADO (1960)
PEDRO, O LOUCO (1965)

D. W. Griffith
O NASCIMENTO DE UMA NAÇÃO (1915)
INTOLERÂNCIA (1916)

Howard Hawks
SCARFACE, O HOMEM DA CICATRIZ (1932)
PARAÍSO INFERNAL (1939)
RIO VERMELHO (1948)
A CULPA FOI DO MACACO (1952)
OS HOMENS PREFEREM AS LOURAS (1953)
RIO BRAVO (1959)

Werner Herzog,
AGUIRRE, O AVENTUREIRO (1972)
FITZCARRALDO (1981)

Dennis Hopper
EASY RIDER (1969)

Alfred Hitchcock
A JANELA INDISCRETA (1954)
A MULHER QUE VIVEU DUAS VEZES (1958)
PSICO (1960)

Peter Jackson
BRAINDEAD - MORTE CEREBRAL (1992)
O SENHOR DOS ANÉIS (I, II e III)

Mathieu Kassovitz
O ÓDIO (1995)

Elia Kazan
HÁ LODO NO CAIS (1954)

Buster Keaton
O REI DOS COWBOYS (1925)
A GLÓRIA DE PAMPLINAS (1926) co-realizado com Clyde Bruckman

Abbas Kiarostami,
E A VIDA CONTINUA (1992)
ATRAVÉS DAS OLIVEIRAS (1994)
O SABOR DA CEREJA (1997)

Stanley Kubrick
DOUTOR ESTRANHOAMOR (1964)
2001, ODISSEIA NO ESPAÇO (1968);
LARANJA MECÂNICA (1971);
BARRY LYNDON (1975)
SHINING (1980)
FULL METAL JACKET - NASCIDO PARA MATAR(1987)


continua...

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