31 de dezembro de 2008

"Waltz With Bashir" por Ricardo Clara

Coincidências à parte, estrear um filme que procura redimir consciências sobre o papel da Força de Defesa Israelita (IDF) nos massacres de palestinianos, perpretados nos campos de refugiados de Sabra e Chatil, numa altura em que Israel bombardeia sem apelo nem agravo a Faixa de Gaza, confirma mais uma vez o cinema como um veículo entre a história e a actualidade.

Num registo docu-ficcional, "Waltz With Bashir" / "A Valsa com Bashir" é a oportunidade terapeutica de Ari Folman procurar entender qual foi o seu papel naqueles massacres, tendo como ponto de partida uma conversa num bar com um antigo companheiro de armas. Por entre dois copos, o seu velho amigo conta-lhe como está intrigado por um sonho recorrente que tem, onde é perseguido por 26 cães raivosos, cuja intenção é tirarem-lhe a vida. A curiosidade deste número tão certo - 26 - transporta-os de volta para a guerra Líbano-Israel, onde ambos combateram, e onde aquele soldado teve de liquidar essa quantidade de cães, para estes não avisarem a população da chegada das tropas.

É neste ponto, que Folman se questiona: qual foi o seu verdadeiro papel na guerra? A que distância esteve dos massacres? Isto, porque é incapaz de ter memórias concretas desse pedaço da sua vida. Folman não está amnésico. Ele simplesmente encontrou um mecanismo de defesa que lhe impede de recordar aquele capítulo da guerra.

Assim, decide encetar uma visita por vários colegas de armas, para tentar entender, no meio das suas visões alucinadas de vermelhos, castanhos e amarelos tão carregados que até chegam a doer, onde se cruzam flashes luminosos nos céus de Beirute com uma mulher nua gigante onde ele navega, o verdadeiro papel da IDF na contenda.

Para tal, Folman recorre à rotoscopia digital enquanto técnica de animação para exacerbar as suas dúvidas e alucinações, num processo de catarse não só interior, mas também agregada ao colectivo israelita e à consciência de um povo que ainda hoje procura saber (se é que já não sabe, mas só agora torna público) o alcance do conflito israelo-libanês. Através dela, onde a imagem real é manipulada digitalmente, distorce as cores e profundidades, carrega as imagens com uma luminosidade quase transcendental, hiperbolizando a narrativa. Pouco a pouco, com entrevistas a várias pessoas que fizeram parte da guerra, aproxima-se da questão de Sabra e Chatil, e tenta erguer, tijolo por tijolo, um edifício de recordações perdidas.

Quando lá chega, Folman percebe que a realidade é dura de mais para ser transmitida pela animação, e decide mostrar o horror final na sua versão mais cruel e directa.
Uma obra pura e sincera, despudorada, eléctrica e flamejante, um verdadeiro "Apocalypse Now" israelita, que demonstra pela via do excesso visual, a ténue linha entre a verdade na guerra e a sua ficção. Indispensável.




Título Original: "Waltz With Bashir" (Israel/Alemanha/França
/EUA, 2008)
Realização: Ari Folman
Argumento: Ari Folman
Intérpretes: Ari Folman, Ron Ben-Yishai e Ronny Dayag
Animação: David Polonsky
Música: Max Richter
Género: Guerra / Animação / Documentário
Duração: 90 min.
Sítio Oficial: http://waltzwithbashir.com

Melhores Filmes 2008

Pancadaria da velha aqui no estaminé. Sem dó nem piedade. Tiros, explosões, socos e matracas a voar por entre as cadeiras e os DVD que se amontoam à espera de um visionamento cuidado, enquanto os livros recebem um tratamento de desprezo, traduzido numa camada de pó que não nos deixa mentir.

A escolha dos Melhores Filmes de 2008 foi um calvário. Tradução literal da antítese de gostos, concepções e arrebatamentos oferecidos pelo cinema, esta é a lista possível, depois de um de nós (que por pudor me escuso a nomear) ter dado entrada nas urgências, na titânica luta da escolha de nomes. Aliás, o facto de colocarmos a lista por ordem alfabética denuncia a humanidade que ainda nos resta em não pôr termo à vida uns dos outros.

Uma lista não passa disso mesmo. Portanto, aqui fica um rol de sugestões ou lembranças do que 2008 nos deixou de bom.





















"The Kite Runner" por Nuno Reis


Vivemos em tempos conturbados, com guerras sucessivas e, mais trágico ainda, novas formas de guerra e inimigos desconhecidos. Se o terrorismo não tem local nem hora para atacar, localizar no mapa um inimigo chamado Al-Qaeda ou talibãs também não parece possível. Para simplificar o Afeganistão tem ficado com as culpas. O livro "The Kite Runner" tentou mudar as mentalidades e mostrar que os afegãos são pessoas como nós. Alguns bons, alguns maus, muitos deles simples vítimas. Primeiro dos russos, depois dos talibãs, por último dos americanos.
Apesar de parecer um projecto do Médio Oriente é um pouco de todos os outros sítios. A produção é americana. A passagem a filme foi confiada ao alemão Mark Foster, realizador de "Monster’s Ball", "Finding Neverland", "Stranger Than Fiction" ou o mais recente "Quantum of Solace". As filmagens foram feitas na China e foram contra tantas leis muçulmanas que os actores menores tiveram de emigrar à custa dos estúdios.

Amir é um rapaz de posses que vive com o pai e um criado. Hassan, filho desse criado, é o seu único amigo e uma pessoa verdadeiramente especial. A dedicação a Amir é enorme. É o seu guarda-costas e o seu kite runner/corredor de papagaios: quando nas lutas de papagaios se corta o fio do adversário, o corredor que lá chegar primeiro fica com os destroços. Amir retribui a amizade lendo para Hassan que nunca foi à escola. O amor de Amir pela leitura estende-se também à escrita, incentivado por Rahim Khan, um amigo do pai.
Quando por medo Amir falha como amigo a vergonha é tal que expulsa Hassan de casa para não ter de o encarar. Anos depois os soviéticos invadem Cabul e Amir e o seu pai anti-comunista vêem-se obrigados a fugir na clandestinidade. Passam os anos e um Amir adulto, respondendo a um apelo de Rahim Khan, voltará a um país agora dominado pelos talibãs para saldar a sua divida. A principal diferença que encontra é que a vida não tem valor e a honra não tem significado.

Há muita gente de parabéns por este filme. A constante troca nos diálogos entre árabe e inglês dá um ar real às personagens. A realização está muito boa e os planos aéreos sabem a pouco. A caracterização das personagens mais velhas, o pai e Rahim Khan, está excelente. Talvez por isso o melhor do filme seja a interpretação de Homayoun Ershadi (o pai). Como quarenta ou setenta anos tem uma presença e uma expressão inacreditáveis.
Lançado numa época crítica das relações do mundo com os árabes, o livro foi um enorme sucesso pelo retrato de um povo ostracizado. A passagem a filme não ia ser fácil. A propaganda anti-talibã foi retirada, a mensagem de medo é tão bem passada que isso seria redundante. O número de personagens foi reduzido, uma foi alterada para melhor, mas as fundamentais estão lá. No fim cortam o pedaço menos emocionante – lidar com burocracias - transmitindo só a acção. Não se sente o tempo a passar, mas todos esses detalhes juntos fariam com que o filme chegasse perto das três horas.


Título Original: "The Kite Runner" (EUA, 2007)
Realização: Marc Foster
Argumento: David Benioff baseado no livo de Khaled Hosseini
Intérpretes: Khalid Abdalla, Atossa Leoni, Shaun Toub, Homayoun Ershadi
Fotografia: Roberto Schaefer
Música: Alberto Iglesias
Género: Drama
Duração: 128 min.
Sítio Oficial: http://www.kiterunnermovie.com/

30 de dezembro de 2008

Está tudo dito


Desde que "Zombie Strippers" foi anunciado os títulos série Z não tiveram vergonha em se fazerem anunciar de forma estridente. O desafio que foi colocado a Stewart Williams e Paul Hupfield foi no mínimo peculiar. É possível inventar um título muito estúpido que seja apelativo para o público?
A resposta deles foi um daqueles ovos de Colombo que aparecem a cada cinco anos. Ninguém se lembraria, mas agora está na ponta da língua. Haverá algum título mais explícito que Lesbian Vampire Killers?

A dupla gostou tanto do título que fez um argumento e em Março vai sair o filme.



Dois falhados em férias vão dar a uma aldeia isolada onde apenas vêem homens. Quando um autocarro de belas estudantes estrangeiras é aprisionado, estes dois vão ter de as resgatar. É quando descobrem que todas as mulheres são raptadas por vampiras lésbicas.






"Funny Games U.S." por Nuno Reis


Anna: Why don't you just kill us?
Peter: You shouldn't forget the importance of entertainment.

Após uma larga carreira nacional especialmente em televisão e teatro, em 1997 Haneke entrou pela porta grande no panorama do cinema mundial com "Funny Games". Imediatamente os planos longos e a violência se tornaram imagem de marca que a espacez entre trabalhos vai mantendo. Título incontornável do cinema recente europeu, "Funny Games" nas palavras do seu realizador foi uma crítica à sociedade e cultura americana, tão propensas à violência. Dez anos volvidos decidiu recriar a obra-prima em versão americana. Por um lado fez bem, se não fosse ele seria outro com menos talento. Mas não será isso admitir a impotência do cinema não falado em inglês no maior mercado do mundo?

Haneke traz-nos o drama de uma família confrontada com visitantes peculiares. Os dois jovens que os visitam atrás de uma educação extrema escondem personalidades de psicopatas. Subjugados pelos seus captores acabam presos num jogo mental onde as principais regras do cinema são repensadas. Um filme verdadeiramente único.... se não fosse clone do anterior.
Como é muito bem dito por Paul na citação acima transcrita, o entretenimento favorito da sociedade actual é uma morte demorada e tortuosa. Só a vítima poderia preferir a forma fácil de morrer. Paul e Peter, a estranha dupla delinquente, seguem apenas as suas próprias regras, impõem as suas regras ao universo e brincam com tudo. O criminoso comanda não só os reféns, mas até quem se sente protegido no conforto da sala de cinema. Para esses estão reservadas uma espectacular cena de leitura de mentes e uma distorção temporal.

Para este remake Haneke apresentou a planta da casa original de forma a ter uma igual. Os diálogos foram traduzidos literalmente e noventa e nove por cento dos planos são idênticos aos que filmou há dez anos. É uma enorme arrogância dizer que o que filmou há dez anos não precisa de melhoramentos. Ou não se arrependeu de nada do que fez, ou não aprendeu nada novo. O mínimo que se pedia por respeito aos espectadores – o público pretendido para este filme eram os americanos, na realidade quem o viu foram alguns adolescentes e as mesmas pessoas de todo o mundo que já tinham visto o primeiro – era que repensasse a montagem.
Ao não inovar escapa a críticas. Algo que desagrade pode sempre dizer que foi para ser fiel ao original. O mesmo se aplica aos actores. Estão todos fenomenais e Michael Pitt tem o maior desempenho da sua carreira, mas não é algo pessoal. O que fizeram foi copiar uma interpretação brilhante de outrém.

A palavra remake aqui já não faz sentido. Isto é um clone. Se todos os anos fosse feito um clone do melhor filme de sempre, seria ele o melhor do ano? O filme mais visto de sempre pintado de fresco seria o mais visto do ano durante dois anos?
Continua a ser um grande filme, mas gastar dinheiro com uma equipa e cenários quando o resultado final não faz mais do que uma dobragem é loucura e falta de respeito pela equipa original.


Título Original: "Funny Games U.S." (Alemanha, Áustria, EUA, França, Itália, Reino Unido, 2007)
Realização: Michael Haneke
Argumento: Michael Haneke
Intérpretes: Tim Roth, Naomi Watts, Michael Pitt, Brady Corbet
Fotografia: Darius Khondji
Género: Crime,Drama,Thriller
Duração: 111 min.
Sítio Oficial: http://www.funnygames-themovie.com/

Melhores Discos 2008

Como é hábito, o Antestreia divulga aqueles que são, na nossa opinião, os Melhores Discos deste ano que está prestes a terminar. Isto porque podemos sempre tirar uns minutos ao cinema para ouvir boa música.


1º VAMPIRE WEEKEND - "VAMPIRE WEEKEND"


2º PORTISHEAD - "THIRD"


3º SPIRITUALIZED - "SONGS IN A&E"


4º FLEET FOXES - "FLEET FOXES"



5º THE NOTWIST - "THE DEVIL, YOU + ME"

"Reservation Road" por Nuno Reis


Emma: Can you hear music if you're in heaven?


Vindo do mesmo argumentista e realizador que o magnífico "Hotel Rwanda" este era um filme a não perder. Poucas situações são mais graves que um genocídio, mas tudo depende da perspectiva. Este tema é igualmente triste e chocante, se bem que tem a agravante de se poder passar com qualquer um de nós e a qualquer instante. Falo da morte inesperada de uma criança inocente. Pegou no livro de John Burnham Schwartz e juntos adaptaram para cinema.

O filme centra-se em duas famílias diferentes. De um lado temos a família perfeita: o pai Ethan (Joaquin Phoenix), a mãe Grace (Jennifer Connelly), a filha Emma (Elle Fanning) e o filho Josh. São felizes e unidos. Do outro temos um pai divorciado Dwight (Mark Ruffalo) e o filho que apenas vê uma vez por semana. Os destinos destas duas famílias cruzam-se tragicamente quando Dwight atropela mortalmente Josh. Num impulso de medo e por o filho não ter visto nada, Dwight segue viagem. Estes são os primeiros dez minutos, todo o resto do filme é acerca de como lidam com isso.
Quem já perdeu alguém querido sabe aquilo por que os pais estão a passar. Ter de lidar com a dor e com sentimentos infundados de culpa, mas simultaneamente ser um poço de coragem para evitar que a filha sofra. Ethan ao fim de uma semana retoma a vida de professor e estuda a legislação para punir ao máximo o assassino. Grace nem consegue sair de casa. Do outro lado temos a dor de Dwight que se quer entregar, mas não quer estragar a sua vida e perder o direito de ver o filho. Pais, irmã e condutor sentem todos o mesmo – desespero.

O ponto forte deste filme está nas interpretações. Cada um dos actores dá o máximo de si para construir uma personagem única. Nos restantes campos é mediano. Com o avançar da história o lado humano perde importância e começa uma desinteressante história de vingança. Torna-se convencional quando era exigido que se mantivesse único.
Desenvolver hora e meia de filme em torno de um acidente sem dar alguma substância é arriscado. Neste caso em particular estava a correr bem, mas a especificação torna o filme mais cansativo e apenas o jogo do gato e do rato entre pai e criminoso não basta para animar.
Dentro do género é preferível ver um "Things We Lost In the Fire" que tem maior variedade temática.


Título Original: "Reservation Road" (Alemanha, EUA, 2007)
Realização: Terry George
Argumento: Terry George, John Burnham Schwartz
Intérpretes: Joaquin Phoenix, Jennifer Connelly, Mark Ruffalo, Elle Fanning, Mira Sorvino
Fotografia: John Lindley
Música: Mark Isham
Género: Drama, Thriller
Duração: 102 min.
Sítio Oficial: http://www.filminfocus.com/focus-movies/reservation-road/movie-splash.php

29 de dezembro de 2008

"The Other Boleyn Girl" por Nuno Reis

Filmes recentes trouxeram a público a vida de duas das maiores rainhas inglesas. Façamos um exercício mental e tentemos recordar os grandes Reis desse país. O Artur das lendas ou o Coração de Leão por quem Robin Hood lutou são nomes populares, mas entre os Reis de obra feita o primeiro nome é Henrique VIII. Para o bem e para o mal mudou o país e o mundo de forma que se reflecte nos nossos dias. Foi o maior exemplo de "a vontade do Rei é a lei", pois bastava uma mudança de humor para alterar o que lhe aprouvesse. Quando se mostrou descontente com a religião do Vaticano, fundou uma nova. E isto só porque lhe apetecia mudar de esposa... O filme não dá especial destaque ao Rei. Nem à corte ou ao Reino. Fala de uma criança que tem de crescer na corte e ser o joguete da família em busca de prestígio. É um retrato social pelos olhos de quem achou que tinha tudo, quando na verdade nem sequer tinha liberdade para tratar de si.

Mary casou ainda criança. Inicialmente deslumbrada pela vida na corte, cedo percebeu que a sua infância tinha acabado. O pai acha que o interesse do Rei na sua jovem filha lhe pode ser proveitoso e entrega-a. Quando Mary engravida do Rei, o pai, para evitar que o Rei se interesse por uma rapariga de outra família, usa a filha mais velha para o seduzir. Enquanto Mary era bondosa e gentil, Anne é uma astuta jogadora disposta a tudo para subir na hierarquia. Ser rainha é o seu objectivo máximo. O Rei é lançado numa luta contra a rainha, contra a nobreza (inclusivamente o grande Thomas More) e contra o seu povo. Anne que parecia estar do lado dele trabalha apenas para si própria e acaba gerando um conflito entre todos: Os Bolena, o Rei, Espanha , a Igreja, a Rainha, Anne... e a pobre Mary que apenas queria seguir a sua vida em paz fica sem o marido, sem o filho e poderá mesmo perder a vida.

Este é mais um daqueles casos onde o livro é tão bom que o filme vai parecer sempre mau. A riqueza de detalhes que o livro contém transporta-nos para o século XVI e revela-nos uma Mary que o filme nunca ambiciona mostrar. Em papel tem muitos detalhes supérfluos, mas não foram apenas esses que foram tirados. Argumento e montagem parecem ter feito especial esforço para manter o filme curto e se isso não se pode fazer com históricos, com adaptações de livros muito menos. Passam o sensacionalismo disponível, acrescentam algum, mas falham redondamente no lado humano do problema.
Como aspecto positivo é obrigatório dizer que o casting foi fenomenal. As actrizes seleccionadas para liderar foram provavelmente as melhores escolhas, por combinarem inegável talento, fama e beleza. Os restantes, meros figurantes do duelo de irmãs, foram escolhas acertadas.
O desenlace que no livro é intenso e demorado, aqui é despachado como se não interessasse. Podia terminar combinando paixão e sofrimento, mas a grande oportunidade que tinha para deixar uma marca na memória do espectador é substituída por uma lamechice e pelos créditos.


Nota histórica: foi neste cenário que nasceu Elizabeth e o que se seguiu a estas trevas foi a era dourada de Inglaterra.


Título Original: "The Other Boleyn Girl" (EUA, Reino Unido, 2008)
Realização: Justin Chadwick
Argumento: Peter Morgan (baseado no livro de Philippa Gregory)
Intérpretes: Natalie Portman, Scarlet Johansson, Eric Bana, Kristin Scott Thomas
Fotografia: Kieran McGuigan
Música: Paul Cantelon
Género: Drama, Histórico ,Romance
Duração: 115 min.
Sítio Oficial: http://www.theotherboleyngirlmovie.co.uk/

"Untraceable" por Nuno Reis

Crimes 2.0

O mundo não pára de evoluir e a Internet é o actual retrato do rumo que o progresso toma. Tudo aquilo que a sociedade tem de bom e de mau está reflectido no que é publicado na Internet. Em "Untraceable" é criticada a febre voyeurista que nos leva a colaborar na morte de uma pessoa voluntariamente. Bem vindos à web 2.0, onde a vida está suspensa numa rede sem fios.

Jennifer Marsh é uma ciber-agente do FBI. O trabalho dela é policiar a Internet detectando piratas, predadores sexuais e todo aqueles que tornam a Internet um local menos seguro para se estar. O caso mais estranho que tem em mãos é de um site que, dependendo do número de visitantes, matará mais depressa uma pessoa. Tudo em directo. O enorme talento de quem montou o sistema faz com que não lhe consigam desligar o sistema. Jennifer e o mundo assistem impotentes a mortes por que são co-responsáveis.

Apesar de Jennifer ser do FBI - a polícia interestadual - e de a Internet ser mundial, apenas trata de casos na área de Portland. Esse é o menor dos erros que o filme tem. Equipas especiais de TI utilizarem Windows é por si só uma falha de segurança, mas discutível. Não terem os computadores pessoais protegidos foi distracção. Agora passarem o dia na net e não configurarem uma página de entrada, terem placas gráficas com múltiplos monitores topo de gama, mas usarem teclados com fios e nada ergonómicos... Só isso já devia ser um alerta para o género de filme que vamos ver. O argumento foi feito para o sensacionalismo, mas sem rigor técnico. Qualquer polícia conseguiria tratar do caso em duas horas (burocracia incluída). Eles perdem dias e não sabem o que fazer. É assim tão difícil pedir a todos os provedores Internet que bloqueiem um endereço?? Regimes totalitários fazem-no diariamente sem problemas morais e apenas para cortar propaganda contra o governo.

Na parte não tecnológica o filme é aceitável. Diane Lane tem uma boa interpretação e a realização está curiosa. Também as mortes propostas são interessantes. Não é nenhum Jigsaw, mas é um pequeno génio da tortura. O filme mantém tensão até ao final e termina sem dar algumas respostas o que costuma ajudar a pensar nas pontas soltas por mais tempo.

Aqui o fundamental é perceber o fenómeno. Quando a polícia diz que cada visita contribui para matar alguém indefeso, milhões continuam a ir ao site e a cada morte o número duplica! Quão baixo desceu a moralidade de alguém para se pactuar com uma situação destas? O pior é que essa é única parte verdadeira do filme. O que se passa na TV, no computador, nada parece real. Estamos tão acostumados ao virtual e à ficção que não nos sentimos responsáveis por nada do que fazemos nesse mundo.
Precisamos urgentemente de ética, mas não precisamos de filmes assim.


Título Original: "Untraceable" (EUA, 2008)
Realização: Gregory Hoblit
Argumento: Robert Fyvoent, Mark Brinker, Allison Burnett
Intérpretes: Diane Lane, Billy Burke, Colin Hanks, Joseph Cross
Fotografia: Anastas N. Michos
Música: Christopher Young
Género: Crime, Thriller
Duração: 101 min.
Sítio Oficial: http://www.sonypictures.com/movies/untraceable/



As duas falhas mais técnicas deixo para os entendidos:
  • Quando forçavam o servidor criminoso a mudar de IP o DNS era imediatamente actualizado. Onde se arranja uma cunha assim?
  • Vinte milhões de pessoas ligadas com streaming vídeo e o servidor responde sempre... Quanto terá custado isso em computadores?
  • 28 de dezembro de 2008

    "4 Luni, 3 Saptamâni si 2 Zile" por Nuno Reis

    Vencedor da Palma de Ouro em 2007, “4 Luni, 3 Saptamâni si 2 Zile” é um dos títulos mais importantes do novo cinema romeno. O reconhecimento internacional estendeu-se aos quatro cantos do mundo. Venceu uma dezena de festivais e as principais associações lembraram-se dele nos nomeados para melhor filme estrangeiro.

    Roménia, 1987. O regime comunista ainda está presente e as facilidades não são comuns. Otilia é uma jovem com as preocupações de todas as raparigas da sua idade, mas com um segredo partilhado. Gabita, a sua companheira de quarto, está grávida e pretende fazer um aborto. A contracepção e os abortos são ilegais no país, mas é frequente arranjar quem os faça. Os contactos são feitos clandestinamente e quem já os utilizou dá referências mais ou menos animadoras. O grande problema é que a lei romena não perdoa. O aborto é punido com uma pena relativamente leve, mas acima dos três meses é homicídio. E como indica o título o feto de Gabita já tem quase cinco meses... Enquanto a ex-futura mãe tem uma única coisa na sua cabeça, Otilia tenta manter a sua vida normal.

    Um país em mudança é um cenário como qualquer outro para um drama pessoal. A crueza com que é retratada a condição humana é que distingue este filme dos demais. Não usa o facilitismo de criticar o regime, opta pelo bem mais complicado retrato social. Mostra-nos uma mentalidade diferente com um olhar documental. Nesta época qualquer crime era punido e vemos duas raparigas indiferentes a isso. Querem levar o seu plano avante e nunca ter de olhar para trás.

    É uma produção modesta. Esta história não precisava de cenários elaborados, músicas ou efeitos especiais. Só precisava de uma grande actriz e que bela interpretação nos dá Anamaria Marinca. Este espectáculo é de uma pessoa só e essa pessoa é Marinca. A sua Otilia carrega o segredo de um crime, enfrenta problemas amorosos e tem ainda de manter as aparências. Grande papel num grande filme.
    Cristian Mungiu gosta de ter controlo absoluto sobre os seus filmes. Normalmente escreve e realiza, neste caso também foi quem produziu. Como tal é o único responsável - tirando Marinca - pelo primeiro êxito de uma cinematografia cada vez mais rica e cativante.


    Título Original: "4 Luni, 3 Saptamâni si 2 Zile" (Roménia, 2007)
    Realização: Cristian Mungiu
    Argumento: Cristian Mungiu
    Intérpretes: Anamaria Marinca, Laura Vasiliu, Ion Sapdaru
    Fotografia: Oleg Mutu
    Género: Drama
    Duração: 113 min.
    Sítio Oficial: http://www.4months3weeksand2days.com/

    "Speed Racer" por Nuno Reis

    Quando uma dupla de realizadores de créditos firmados como os irmãos Wachowski decide passar para cinema uma série japonesa de animação com quarenta anos ou querem dar algo novo ao mundo, ou estão desesperadamente a precisar de ideias. Este "Speed Racer" é uma mistura de ambos os casos. Apresentam um clássico a uma nova geração, mas sem fazer disso um revolucionário passo na arte.

    Racer é o apelido de uma família que sempre se dedicou às corridas. A sua oficina faz os melhores carros e ser piloto está-lhes no sangue. Mas Rex Racer foi acusado de viciar resultados e saiu de casa pedindo ao irmão que acreditasse nele. Tragicamente perdeu a vida numa corrida pouco depois e o jovem Speed nunca veio a saber qual era o plano do irmão. Anos depois é Speed que é o grande piloto. Os Racer voltam a vencer todos os grandes prémios e todos os recordes que não fossem de Rex estão a passar lentamente para Speed. O sucesso volta a atrair as atenções para a família. Enquanto a imprensa profetiza o melhor condutor de sempre (e desespera para descobrir um novo escândalo no sucesso), os grandes construtores querem associar-se ao fenómeno. Quando Speed se vê envolvido no esquema que destruiu o irmão vai iniciar uma cruzada contra a corrupção onde só poderá confiar na família. É uma versão menos violenta de "Rollerball" onde se usa carros em vez de patins.

    Os actores são um conjunto de luxo. Os veteranos John Goodman e Susan Sarandon são os pais. Emile Hirsch é o protagonista, a sua amada é Christina Ricci e o agente secreto que investiga as corridas é Matthew Fox. Apesar deste magnífico lote de estrelas aqui não se encontram grandes interpretações. É um filme virado para a acção e intriga, onde as pessoas são o menos importante. Todo o espectáculo gráfico que caracterizava a série foi passado para o filme. As berrantes cores azul, vermelho e branco dominam todas as imagens. Carros e pistas são desenhados com tão incríveis curvas que contrariam o que é feito actualmente nas competições de motores, e ainda algumas leis da física. É muito fácil não gostar de todo este sensacionalismo, como dura mais de duas horas convém pensar bem antes de começar a ver.

    Realismo não tem nenhum, mas não se pode dizer que faça falta. É muita acção, humor, intriga e ainda mais acção. Os carros de corrida trazem mais armas que os de Wacky Races. Não traz nada de novo ao cinema como arte, mas é uma boa escolha para quem procura entretenimento.

    Título Original: "Speed Racer" (Alemanha, EUA, 2008)
    Realização: Andy Wachowski e Larry Wachowski
    Argumento: Andy Wachowski e Larry Wachowski
    Intérpretes: Emile Hirsch, Christina Ricci, John Goodman, Susan Sarandon, Matthew Fox, Paulie Litt
    Fotografia: David Tattersall
    Música: Michael Giacchino
    Género: Acção
    Duração: 135 min.
    Sítio Oficial: http://speedracerthemovie.warnerbros.com/

    "Burn After Reading" por Ricardo Clara

    Realizar um filme que viesse a suceder a "No Country For Old Men" (2007) era uma tarefa hercúlea para Joel e Ethan Coen, os grandes vencedores da noite de Óscares de 2008, com a impressionante história do assassino Anton Chigurh. "Burn After Reading" / "Destruir Depois de Ler" foi o passo seguinte da dupla de realizadores.

    Difícil, porque a fórmula dos Coen assenta sempre em premissas bem definidas: personagens bem estruturadas, ambiente desenhado ao pormenor, e um argumento equilibrado e escrito com enorme precisão. "No Country..." atingiu um equilíbrio absolutamente notável, como já havia acontecido com "Blood Simple." (1984), "Miller's Crossing" (1990), "Fargo" (1996) e "The Big Lebowski" (1998, onde produzem a comédia de eleição da sua filmografia). Acontece que, em muitos casos, a linearidade não é atingida, acabando a peça final por redundar num fita competente, mas longe de ser extraordinária.

    Em "Burn After Reading" / "Destruir Depois de Ler", Chad Feldheimer (Brad Pitt) e Linda Litzke (Frances McDormand) são dois intrutores num ginásio de Washington. Chad é um tipo oco, viciado em pastilha elástica e exercício físico, e tem em Linda a sua melhor amiga. Esta, por sua vez, traçou como meta a sua refundação pessoal, que passa por ser submetida a algumas intervenções estéticas, para encontrar definitivamente o amor.
    Nesse ginásio encontram um CD com um sem número de informações valiosas da CIA, que por descuido foi deixado no chão do balneário feminino. Esse material pertence a Osbourne Cox (John Malkovich), um operacional governamental a contas com um despedimento por alcoolismo. Cox é casado com Katie (Tilda Swinton), a qual tem uma relação amorosa com Harry Pfarrer (George Clooney), um marshal norte-americano. Este, por sua vez, não só é casado com uma autora de sucesso de livros infantis (Elizabeth Marvel), como decide (por intermédios de sites online de encontros) envolver-se com Linda (como muito bem podia envolver-se com qualquer mulher que lhe respondesse).

    O que aparenta ser uma enorme confusão, torna-se numa linear estória de espiões, com Linda e Chad a tentarem vender a informação à embaixada russa nos EUA, e um grupo de espiões e pseudo-espiões a perseguirem-se uns aos outros sem sair do síto.
    As personagens, como é apanágio dos Coen, são esculpidas com uma minúcia irrepreensível, apoiado na obrigatória maestria dos actores que a encarnam, e resultam maravilhosamente. O Chad de Pitt confirma este como um actor um nível acima dos demais, desencantando um boneco tonto como nunca haviamos visto. Linda é interpretada por Frances McDormand e, à partida, seriam desnecesessárias mais adjectivações à construção deste trabalho. Palerma mas onírica, decidida mas descrente de si mesma, apura uma enorme interpretação, a fazer lembrar Marge Gunderson de "Fargo".
    Clooney é competente, como sempre. Um bipolar de eleição, que de um momento para o outro se transforma num agente da autoridade depravado e confiante (prova disso a almofada triangular de espuma ou a cadeira que constroi, top-secret, na arrecadação) numa bailarina amedrontada, a correr parque fora. Malkovich regressa, finalmente, a um grande papel. É o estupor perfeito, alcoólico de fim de tarde, rei e senhor do vocábulo fuck e de todas as suas declinações.
    A realização, como sempre, imaculada, apoiada na fotografia de Emmanuel Lubezki ("Children of Men", 2006) e na banda sonora ritmada e muito bem definida de Carter Burwell (que já havia trabalhado com os Coen em "O Brother, Where Art Thou?" - 2000, entre outros). De antologia, sequências como a do disparo sobre Chad (e a expressividade deste na desconfiança do uso a dar à dita almofada, que culmina com Pfarrer esticado no chão, atónito) ou a de Malkovich de roupão e machado a invadir a sua própria casa.

    Infelizmente, desequilibra-se um pouco quando o burlesco é levado ao extremo, mas nem por isso deixa de ser uma comédia de enorme sagacidade e ao nível do melhor que em 2008 se fez no cinema de comédia norte-americano. Simplesmente, made-in Coen.



    Título Original: "Burn After Reading" (EUA, 2008)
    Realização: Joel e Ethan Coen
    Argumento: Joel e Ethan Coen
    Intérpretes: Frances McDormand, John Malkovich, Tilda Swinton,
    George Clooney e Brad Pitt
    Fotografia: Emmanuel Lubezki
    Música: Carter Burwell
    Género: Drama / Comédia
    Duração: 96 min.
    Sítio Oficial: http://http://www.filminfocus.com/focusfeatures/film/burn_after_reading

    "Entre os Dedos" por António Reis

    Como tudo o resto na sociedade portuguesa, o sentimento geral no cinema português é de crise. Crise de produção, crise de ideias e, obviamente, crise de distribuição. O centenário Manoel de Oliveira deu para animar o ano, mas não esconde as reais dificuldades de um cinema em busca de identidade. Depois do sucesso de estreia da dupla Tiago Guedes e Frederico Serra com o interessante "Coisa Ruim", que era um projecto original dentro da produção portuguesa porque abria as portas do fantástico e do lendário tradicional, a expectativa deste novo filme era muito elevada.
    Este pressuposto condiciona a escolha de um novo guião porque as comparações serão inevitáveis. "Coisa Ruim" tinha recebido muito boas referências críticas, tinha conseguido razoáveis números de bilheteira e tinha feito o circuito dos festivais com êxito.

    "Entre os Dedos" marca uma inflexão na carreira destes jovens realizadores e integra-se na categoria de cinema sobre o quotidiano suburbano, depressivo e deprimente, que constitui quase o fado do nosso cinema. História de vidas que se cruzam marcadas por desencontros sucessivos de afectos, conflitos, emoções e obstáculos sem esperança de redenção, o seu tom cinza é uma escolha acertada para traduzir o estado de espírito dos seus personagens. Sem pretender ser uma metáfora de Portugal numa encruzilhada, sem arriscar uma abordagem sociológica de marginalidades étnicas ou exclusões sociais, "Entre os Dedos" é um filme sobre pessoas normais que vivem tempos difíceis e que por isso são vítimas de um contexto que as oprime. Num argumento em que a estrutura narrativa se articula com verosimilhança face ao real, surpreendem apenas algumas alusões ao preconceito racial e ao destroços de África que parecem um pouco forçados para a história.

    Num comentário ocasional ouvido à saída do cinema um espectador sugeria que Portugal precisava de ir ao psiquiatra e um outro sugeria com ironia que o nosso cinema precisa de um Projecto Deolinda. Ir às raízes, falar do que é genuinamente nosso, mas ter uma visão positiva e motivadora sobre nós.
    Os tempos estão difíceis e a vida escore entre os dedos destas personagens, marionetas na mão da vida.




    Título Original: "Entre os Dedos" (Portugal, 2008)
    Realização: Tiago Guedes, Frederico Serra
    Argumento: Rodrigo Guedes de Carvalho
    Intérpretes: Filipe Duarte, Isabel Abreu, Luís Filipe Rocha, Gonçalo Waddington, Paula Sá Nogueira
    Fotografia: Paulo Ares
    Música: Jorge C.
    Género: Drama
    Duração: 100 min.
    Sítio Oficial: http://www.entre-os-dedos.com/

    "Bienvenue Chez Les Ch'tis" por Nuno Reis

    O grande êxito europeu deste ano foi "Bienvenue Chez Les Ch'tis". Só em França teve 20,3 milhões de espectadores, mais que todas as salas portuguesas juntas desde o início do ano. Também em França bateu os recordes de melhor estreia, filme francês mais visto de sempre, e só não foi o filme mais visto de sempre porque "Titanic" teve mais 400000 espectadores. Foi três vezes mais visto que qualquer outra estreia da década em França, e bem mais lucrativo seguramente. Qual o segredo para tamanho sucesso? Ser uma despretensiosa e animada comédia, alternar situações plausíveis e mirabolantes, gozar com o sotaque e simultaneamente mostrar tudo aquilo que um povo tem de bom. Os americanos gostaram tanto que o remake dentro de dois anos já estará em exibição.

    Philippe é um funcionário dos correios que tenta conseguir um destacamento para a solarenga Riviera. A mulher está deprimida com a confortável mas modesta situação em que vivem e isso afecta o casamento. Quando Philippe está quase a conseguir novo posto há sempre alguém a tirar-lhe o lugar. Farto disso decide influenciar os resultados e, ao ser apanhado, é destacado para uma distante aldeia no gélido norte. Tendo como alternativa o desemprego vê-se obrigado a partir para Berges, terra de bêbedos violentos com um sotaque horrível. Chegamos a Berges como o protagonista, numa noite escura de chuva. As pessoas estranhas e incompreensíveis esforçam-se sem sucesso para conseguir integrá-lo. Philippe está desterrado numa terra hostil entre selvagens e só de quinze em quinze dias pode ir a casa. Quando começa a conhecer as pessoas vai mudando de opinião, são apenas mais alegres e espontâneos do que a gente do sul. No fim vê-se apaixonado pela terra e pela gente e tem de aprender a gerir a sua vida dupla, tão melhor com a mulher longe.

    Quem diz não gostar de comédias francesas tem de experimentar ver esta. Dez minutos são mais do que suficientes para perceber o estilo de humor francês. Sempre directo e mordaz, mas inteligente quando possível. "Bienvenue Chez Les Ch'tis" não foge às piadas fáceis, mas evita-as quando prejudicariam a história. Muitas vezes é previsível, mas é tão divertido que faz sempre rir.
    Outro grande ponto a favor deste filme é ensinar o idioma ao espectador como mandam as regras, uma palavra de cada vez, com exemplos e um teste prático. É tão fácil e discreto que logo tudo fica mais compreensível. Especialmente por isso é preferível tentar perceber o que dizem a seguir o caminho fácil e ler as legendas. Foi feito para franceses e é preciso pensar como um para melhor apreciar. Mesmo assim é uma das comédias do ano e das que é fácil gostar.


    Título Original: "Bienvenue Chez Les Ch'tis" (França, 2008)
    Realização: Dany Boon
    Argumento: Dany Boon, Alexandre Charlot e Franck Magnier
    Intérpretes: Kad Merad, Dany Boon, Zoé Félix, Anne Marivin
    Fotografia: Pierre Aïm
    Música: Philippe Rombi
    Género: Comédia
    Duração: 106 min.
    Sítio Oficial: http://www.chtinn.com/

    27 de dezembro de 2008

    "Wall•E" por Nuno Reis

    Nenhum ano cinematográfico fica completo sem a estreia nas salas de um filme Pixar. Este ano em condições especiais pois não havia outras estreias a desviar atenções de "Wall•E". Precedida por uma campanha de marketing que durou cerca de um ano, esta longa-metragem focou as atenções do mundo. O trailer com a inesquecível música de Michael Kamen apresentou-nos um adorável robot que estava a levar a peito as suas últimas instruções: fazer da Terra um local limpo.

    Afinal o que é um Wall•E? A sigla significa Waste Allocation Load Lifter Earth-Class, algo como Empilhador de Desperdícios Modelo-Terreno. Foi-lhes confiada a limpeza do planeta enquanto a humanidade se refugia no espaço. Por razões que só são explicadas quando o filme já vai adiantado todos foram desligados, mas por acidente sobrou um Wall•E. Sozinho, num mundo destruído pela febre consumista da sociedade, não receia meter mãos ao trabalho e faz diariamente uma minuciosa compactação dos desperdícios. Tendo todo o lixo e todo o tempo do mundo para si, Wall•E dedica-se ao coleccionismo de objectos humanos com o mesmo carinho e ingenuidade que Ariel. Vemos nos seus olhos que é mais do que uma simples máquina. No meio de tantas asneiras a mente humana criou algo bom. Aquela junção de peças metálicas é a resposta aos problemas do planeta e da humanidade.
    O quotidiano de Wall•E resume-se a compactar lixo, retirar "tesouros" de entre os vários desperdícios e, ao final do dia, repousar assistindo ao seu adorado "Hello Dolly" e remexendo na sua colecção. Poderia ser mais humano?
    Por vezes um furacão obriga a alterar a rotina, mas não o perturba tanto como a aterragem de uma nave espacial. Dessa nave sai uma EVE (Extra-terrestrial Vegetation Evaluator/Avaliador de Vegetação Extra-terrestre) que analisa detalhadamente a lixeira do protagonista destruindo tudo o que se mexa. Wall•E e EVE acabam por se encontrar e ele mostra-lhe tudo aquilo que considera importante. Quando EVE encontra o que pretendia e abandona o planeta, Wall•E segue-a. Deixará para trás tudo o que tem rumo ao desconhecido, mas tem a certeza de estar a fazer o correcto pois o mais importante é não perder o seu amor.
    Ao reencontrar a humanidade Wall•E fica desiludido. No seu imaginário as pessoas dançam, cantam , são alegres e activas. O que encontra é um mundo onde o sedentarismo e a realidade virtual tomaram conta de todos os humanos e apenas os robots exercem actividades. A maravilhosa inocência de Wall•E terá um enorme desafio pela frente se quer salvar EVE, a humanidade e a si mesmo.

    A nível técnico a Pixar continua a quebrar barreiras que não se sabia existirem. Faz o impensável na animação anos antes dos concorrentes sequer tentarem. Toca em problemas-chave e escolhe os temas que quer sem medo. Neste projecto arrisca em vários campos. Metade do filme não tem diálogos. Profetiza o declínio da espécie com a nova doença que é a febre consumista. Coloca um cenário digno de "2001 Space Odyssey" num filme para crianças. Tem tantos detalhes a referir outros filmes (da Pixar e não só) que pode ser revisto com surpresa várias vezes. A imagem real surge tão naturalmente no meio da animação que Stanton considera ter aberto um difícil precedente para filmes futuros acompanharem. Os planos espaciais em grande ecrã causam uma sensação que ninguém deve ter sentido desde o lançamento de "2001" há quarenta anos. EVE e Wall•E, a perfeição e o seu oposto, juntam-se a um pequeno grupo de robots destinados a ficarem na memória do cinema.

    Foi publicitado como o próximo passo na animação. E a nível técnico têm razão, mas ainda lhe falta algo. Não é a perfeição em formato cinematográfico que se esperava, mas tem uma muito maior actualidade e longevidade que qualquer animação da última década. Se o consumismo vai ser a causa de desaparecimento da humanidade, ninguém pode dizer que não fomos bem avisados.


    Título Original: "Wall•E" (EUA, 2008)
    Realização: Andrew Stanton
    Argumento: Andrew Stanton, Pete Docter e Jim Reardon
    Intérpretes (vozes): Ben Burtt, Elissa Knight, Jeff Garlin
    Música: Thomas Newman
    Género: Animação, Acção
    Duração: 98 min.
    Sítio Oficial: http://disney.go.com/disneypictures/wall-e/