20 de janeiro de 2014

"Grudge Match" por Nuno Reis

Recapitulando os dois filmes anteriores, Rocky é o bom da fita, LaMotta o mau. Passaram quase quarenta anos desde que Stallone bebeu ovos crus e espancou vacas mortas. De Niro nunca mais teve de fazer piadas num clube nocturno sobre combates, remoendo a angústia de uma desforra que nunca teve. Mas, e se as coisas não se tivessem passado assim? E se os dois mais conhecidos pugilistas do cinema se rencontrassem e tivessem contas a ajustar um com o outro?
Este é daqueles filmes que nunca aconteceria com outros actores. Ninguém queria ver uma versão agressiva de "The Odd Couple". Querem é ver Rocky e LaMotta! Se dois velhotes iam lutar tinham de ser aqueles dois. Tim Kelleher e Rodney Rothman, dois homens da televisão, escreveram. Peter Sega, um homem da comédia, realizou. Ambos os actores iam arriscar muito ao regressarem aos seus Oscares. Se De Niro já tinha brincado com "The Godfather" em "Analyze This" (E então com "Goodfellas" em "Malavita"? É uma cena deliciosa, se ainda o encontrarem em exibição aproveitem.) Stallone nunca tinha ousado brincar com o seu único título oscarizado. Apesar de ir para a sexta sequela. Parece que foi o colega de profissão que o fez ver como era ridículo.
Sorte deles que ficaram em forma. Sorte nossa que tivemos oportunidade de ver um filme que homenageia o culto e, como foi no meu caso, obrigou a rever filmes que existiam muito antes de mim e viverão mais do que eu.

Agora, esqueçam tudo o que disse acima pois não estamos a ver os dois pugilistas que conhecemos desde sempre. São outras personagens, Sharp e McDonnen, dois lutadores rivais de Philadelphia, a cidade de Rocky. Ambos sofreram uma única derrota na carreira e foi um contra o outro. Quando iam ter o terceiro combate, o derradeiro tira-teimas, Sharp reforma-se deixando o combate do século em suspenso. Caíram no esquecimento até um programa da HBO recordar esses combates incríveis o que desperta o interessa de muita gente. O reencontro dos velhos inimigos desperta a rivalidade e o combate torna-se inevitável, mesmo que nenhum esteja em forma! “Razor” Sharp precisa do dinheiro, “Kid” McDonnen quer o combate que lhe é devido, e têm muitos assuntos pessoais a tratar. O fenómeno viral ajuda e depressa todo o mundo quer ver o combate.

É um filme de redenção e sobre compensar o tempo perdido como tantos outros? Sim. Aproveita-se da fama dos anteriores? Certamente. Tem cameos convenientes? Tal como "Rocky" teve Frasier. No entanto isso não o impede de nos proporcionar uns bons momentos vendo aqueles dois às turras. Numa altura em que a terceira idade luta pelo protagonismo - não falo só dos Expendables, mas de "Stand-Up Guys", "Last Vegas" e outros que tal - é bom ver que dois veteranos ainda aguentam umas voltas no ringue e que mandam umas bocas e uns socos como gente jovem. Porque se eles continuam assim jovens de espírito, quem era jovem quando eles foram grandes também se sente rejuvenescido. Ter os heróis de regresso tira pelo menos uma década dos ombros.

A única coisa que parece ter escapado foi a referência desperdiçada a "Demolition Man", mas puxar por mais filmes seria abusar. Quando o filme termina sabe a pouco. É preciso ver os créditos para rir mais um bocado e adiar essa sensação.

Grudge MatchTítulo Original: "Grudge Match" (EUA, 2013)
Realização: Peter Segal
Argumento: Tim Kelleher, Rodney Rothman
Intérpretes: Sylvester Stallone, Robert De Niro, Kim Basinger, Jon Bernthal, Kevin Hart
Música: Trevor Rabin
Fotografia: Dean Semler
Género: Comédia, Desporto
Duração: 113 min.
Sítio Oficial: http://www.grudgematchmovie.com

"Raging Bull" por Nuno Reis

Todos conhecem o "Rocky". Como o herói supera as adversidades, e a vida lhe sorri, e tem uma vitória moral. Desde essa altura que De Niro tentava convencer Scorsese a fazer um filme sobre o mau da história quando se fala de boxe. O actor queria mesmo contar a história de Jake LaMotta. Ironicamente o pugilista em cuja biografia o filme é inspirado não era boa pessoa, mas este registo em película a branco e negro ficará para a posteridade entre as obras-primas do cinema. Podemos considerar como uma boa acção.

Nos anos quarenta Jake LaMotta era imbatível. Sugar Ray Robinson tinha vitórias por decisão do árbitro, mas todos sabiam quem tinha ganho o combate. LaMotta era insensível aos socos. Parecia feito de pedra. O público adorava isso. O problema é que não se limitava ao boxe, em casa era igual. Sempre em busca do conflito, a ser um bruto casmurro sem um pingo de razão ou consciência dos seus actos. Insensível a tudo e convicto da sua perspectiva minimalista, estúpida, animal. Invencível nos conflitos que criava. Enquanto reinou no ringue deu para disfarçar, mas quando se tornou bon vivant a tempo inteiro, essa faceta descambou.

"Raging Bull" não foi um filme qualquer. O ano era 1980. Era o fim de uma década em que o cinema tinha mudado muito. Uma nova geração tinha-se afirmado e o blockbuster tinha nascido. O cinema fantástico ainda não tinha atingido o topo e eram as histórias reais que mais mexiam com público. Os dramas de vida de pessoas comuns. Basta recordar o título do filme que roubou o Oscar a "Raging Bull", "Ordinary People". E de que tratavam os filmes vencedores desde 1977 a 1984, entre Forman e Forman? Ou pessoas normais ou pessoas reais. No entanto o correcto, o socialmente aceite, era falar de pessoas boas. Scorsese não queria saber disso e portanto tanto falava de Boxcar Bertha e Travis Bickle, como dava novas oportunidades a Alice e fazia Charlie perdoar as dívidas. Histórias que marcassem, por muito desagradáveis que fossem.
De Niro estava no topo da sua carreira, com muitas personagens inesquecíveis e três nomeações consecutivas ao Oscar dos anos ímpares para confirmar isso. Mas foi só aqui que realmente se viu do que um actor acima dos demais é capaz. Dos primeiros a sacrificar a saúde e a figura para dar o máximo por um papel, tanto esteve em forma físics para combater (o verdadeiro LaMotta ofereceu-se para o treinar), como ganhou trinta quilos para mostrar o depois.

Fosse a paixão de De Niro pela história, a pesquisa exaustiva de Paul Schrader para dar sabor ao argumento biográfico, a necessidade de Scorsese encontrar um sentido para a vida, a colaboração do retratado, ou os conselhos de Michael Powell, "Raging Bull" foi um acontecimento único na História do Cinema. Tem alguns momentos menos conseguidos - nota-se a inesperiência de Cathy Moriarty - mas também desafia o que era considerado correcto e aceitável num filme e marcou a sua era, assim como o que se seguiu. Quanto teriam coragem artística de misturar preto e branco, slow motion, e freeze frames, numa única obra? E talento para que isso ficasse bem?

O retrato humano, mais do que o profissional, do conhecido campeão, será lembrado como um dos mais profundos despir de alma que já foram transportados para tela. E o mais engraçado é que Marty acha que só conseguiu o máximo desempenho do amigo em "The King of Comedy", apesar de aqui ter interrompido o filme com receio pelo que ser tão Jake estava a fazer à saúde dele. Os heróis são assim, nem se apercebem que estão a escrever a História.

Raging BullTítulo Original: "Raging Bull" (EUA, 1980)
Realização: Martin Scorsese
Argumento: Paul Schrader, Mardik Martin, com Joseph Carter, Peter Savage (baseado no livro de Jake LaMotta)
Intérpretes: Robert De Niro, Cathy Moriarty, Joe Pesci, Frank Vincent
Música: Pietro Mascagni
Fotografia: Michael Chapman
Género: Biografia, Desporto, Drama
Duração: 129 min.
Sítio Oficial:

"Rocky" por Nuno Reis

Quando se fala de boxe, o nome que todos se lembram imediatamente é Rocky. O primeiro filme desse herói do povo tem quase quarenta anos e ainda hoje a música, o suor, os socos na carne pendurada, a corrida escadaria acima para erguer os braços em celebração, não são apenas imagens marcantes de um filme dos anos setenta, são pequenos feitos de um homem que conseguiu cumprir o sonho americano. E esse homem chama-se Sylvester Stallone. Dizer que o filme é sobre cumprir o sonho na terra das oportunidades, não chega. O filme foi o sonho tornado realidade de um jovem actor que converteu a sua angústia como aspirante a actor num história intemporal sobre um aspirante a lutador. Enquanto Rocky tem a oportunidade caída do céu, porque ninguém mais queria enfrentar Apollo, Stallone teve mesmo de lutar contra tudo e contra todos para fazer este pequeno filme que se viria a tornar no mais rentável filme do ano, vencedor de três Oscares entre dez nomeações e um ícone do desporto.

Stallone estravazou o que sentia para o papel. Podia contentar-se com a carreira de argumentista, mas apostou tudo. Era a história dele, queria ser o protagonista. Se escreveram um filme para vocês, não o cedam a outros. Os argumentistas Welles, Chaplin, Allen, Affleck, todos conseguiram uma carreira como actores/realizadores. Acreditem.
Os produtores Irwin Winkler e Robert Chartoff torceram o nariz, mas apostaram com ele. E depois quis o destino que tudo corresse de feição. Muitas das cenas de culto foram assim por necessidades orçamentais (leia-se falta de orçamento).Os actores que aqui vemos, na sua maioria nomeados a Oscar, não foram as primeiras opções, foram os primeiros que aceitaram. É esse o encanto de "Rocky. É um trabalho de subestimados que lutam contra o sistema e triunfam perante o público, a crítica, a Academia, o Desporto e a História. É como se o destino de Rocky se concretizasse uma segunda vez, provando ser mais do que ficção.

A vitória no combate é relativa, é o combate em si que importa. A vida de Rocky melhorou apenas com o convite. Ele não tencionava ganhar, ele só precisava que alguém acreditasse nele quando nem o próprio o conseguia fazer. Não bastou ouvir Mickey.

Mickey: OK, I'm gonna tell ya! You had the talent to become a good fighter, but instead of that, you become a legbreaker to some cheap, second rate loanshark!
Rocky: It's a living.
Mickey: IT'S A WASTE OF LIFE!


Teve de o interiorizar. Teve de suar tudo o que tinha dentro para saber o que estava bem e mal com a vida que levava.

Rocky: I can't beat him.
Adrian: Apollo?
Rocky: Yeah. I been out there walkin' around, thinkin'. I mean, who am I kiddin'? I ain't even in the guy's league.
Adrian: What are we gonna do?
Rocky: I don't know.
Adrian: You worked so hard.
Rocky: Yeah, that don't matter. 'Cause I was nobody before.
Adrian: Don't say that.
Rocky: Ah come on, Adrian, it's true. I was nobody. But that don't matter either, you know? 'Cause I was thinkin', it really don't matter if I lose this fight. It really don't matter if this guy opens my head, either. 'Cause all I wanna do is go the distance. Nobody's ever gone the distance with Creed, and if I can go that distance, you see, and that bell rings and I'm still standin', I'm gonna know for the first time in my life, see, that I weren't just another bum from the neighborhood.


É este estado de espírito que leva ao sonho americano. Por isso é que Apollo entra no ringue como campeão consagrado e Rocky entra como candidato. Apollo seguro do estatuto, Rocky seguro de ter treinado o que podia para dar o máximo. Apollo tinha todo o apoio, com os amigos famosos presentes, e o público da arena simpatizar com ele. Rocky tinha os amigos a ver pela televisão e a namorada no balneário. No ringue, só precisava dos seus punhos. Confiava no seu treino.

Passaram quase quarenta anos e vários filmes com momentos mais ou menos bons deste lutador que se tornou também um herói do povo. Stallone por muitas vezes perdeu e recuperou o respeito do público, mas Rocky continua numa patamar de divindade e o primeiro "Rocky" é ainda um filme incontornável sobre boxe e sobre a vida. "Flying Home Now" (e a posterior "Eye of the Tiger") é ainda capaz de acelerar o coração de qualquer um, atleta ou não, para grandes feitos. "Rocky" é uma celebração da vida e do desporto.


RockyTítulo Original: "Rocky" (EUA, 1976)
Realização: John G. Avildsen
Argumento: Sylvester Stallone
Intérpretes: Sylvester Stallone, Talia Shire, Burt Young, Carl Weathers, Burgess Meredith
Música: Bill Conti
Fotografia: James Crabe
Género: Desporto, Drama
Duração: 119 min.
Sítio Oficial: http://www.sylvesterstallone.com/the-official-rocky-site/

18 de janeiro de 2014

"12 Years a Slave" por Nuno Reis

Seja porque são extraordinários, ou porque a competição é fraca, todos os anos há um punhado de filmes que se destacam dos demais sempre que chegamos à época dos prémios. Um dos grandes favoritos entre os de 2013 era "12 Years a Slave" de Steve McQueen. A história de um homem livre tornado escravo não seria muito apelativa num ano em que "The Butler" esgotou a cíclica simpatia do público pela condição passada da raça negra. Juntava-se a isso que McQueen não me tem agradado particularmente - "Shame" foi uma decepção - e estava com as defesas bem ligadas antes de ir ver este filme. Pois tudo isso passou bastante depressa e "12 Years a Slave" tornou-se rapidamente o meu filme predilecto destes últimos meses.

A história de Solomon Northup, mesmo tendo passado quase dois séculos desde tais acontecimentos, merece muita atenção. Pode ser difícil imaginar a sensação de perder um dos direitos mais fundamentais da existência humana, mas não temos neste milénio o mesmo problema? Milhares de pessoas que partem atrás de uma promessa de trabalho e, em vez de conseguirem uma vida melhor, se vêem sem nada mais do que uma vida de servidão?
A narrativa não se demora a contar como era a vida de Solomon. O título é suficientemente explícito sobre o que acontece e portanto depressa nos deparamos com a nova vida - se é que pode ser chamada vida - que levará sob o nome de Platt. E assim o contexto histórico torna-se insignificante perante a história humana.
A primeira sensação é o medo. Os filmes sobre escravatura já saíram de moda pelo que convém recordar uma coisa muito desagradável dessa condição: a morte é quase uma certeza. O escravo não é uma pessoa, é um objecto. Como tal, a sua vida não tem valor. No máximo terá o preço que é indicado na etiqueta e em caso de indisciplina será prontamente trocado por outro.
A segunda sensação é a esperança. Seja através das memórias da vida passada, ou do sonho de voltar para essa realidade, Solomon não está disposto a morrer facilmente. Utilizará a sua instrução como uma arma secreta. Primeiro evidenciando-se pelo talento musical, depois pela capacidade de trabalho com olho para a engenharia. O título pode estabelecer uma validade para a escravatura, mas não diz nada sobre como sairá dessa situação e portanto o espectador precisa do consolo de ver que o herói tem capacidades acima dos outros escravos, desinstruídos e resignados à sua condição de subserviência.
Enquanto essas duas visões se alternam para causar o cocktail de sentimentos que faz uma grande obra, surge a incerteza. Quem será aliado? Quem o está a enganar? Quantos mais estarão naquela situação? E quando tudo parece fazer sentido emocionalmente, é a violência física que vem derrubar as defesas restantes. A instabilidade do seu senhor e as chicotadas são arrasadoras.

É bastante claro que para ver este filme é preciso estar com a mente preparada e o estômago vazio. Ao contrário de outros grandes filmes, não é preciso estar no estado de espírito adequado. O filme assegura-se que ao longo da projecção o espectador esquece quaisquer distracções e no final não pensará em nada mais. Uma experiência como raramente se tem em cinema.
12 Years a SlaveTítulo Original: "12 Years a Slave" (EUA, Reino Unido, 2013)
Realização: Steve McQueen
Argumento: John Ridley (baseado no livro de Solomon Northup)
Intérpretes: Chiwetel Ejiofor, Lupita Nyong'o, Michael Fassbender, Paul Dano, Benedict Cumberbatch, Sarah Paulson
Música: Hans Zimmer
Fotografia: Sean Bobbitt
Género: Biografia, Drama, Histórico
Duração: 134 min.
Sítio Oficial: http://www.foxsearchlight.com/12yearsaslave/

Uma nota final para os actores aqui reunidos. Depois de tantos anos Chiwetel Ejiofor deu um valente salto para o estrelato. Praticamente leva o filme sozinho com as suas duas vidas. Entre os menos conhecidos, Paul Dano continua a construir um bom currículo e Lupita Nyong'o tem uma bela estreia na longa-metragem (podem revê-la brevemente em “Non-Stop” de Jaume Collet-Serra). O resto de elenco fenomenal pode ser um isco para um público mais alargado (em Portugal a ZON exagerou, mas Itália teve de retirar cartazes de circulação após acusações de racismo por ignorarem o actor principal em detrimento dos secundários), contudo as presenças dos grandes Benedict Cumberbatch e Michael Fassbender são merecedoras de atenção. Outros pelo contrário, como Paul Giamatti e Brad Pitt, têm um mero cameo. Mesmo Sarah Paulson pouco aparece.

7 de janeiro de 2014

"Life Itself" na recta final

A seis dias do fecho, a campanha de financiamento do documentário sobre Roger Ebert ainda não atingiu o objectivo. Será assim tão difícil fazer um filme sobre um crítico de filmes?

Na verdade o filme está concluído, sendo a estreia em Sundance dentro de dias uma certeza. Esta campanha tem sido uma forma de divulgar as intenções e aproximar o público de um dos poucos críticos aclamados e adorados, o maior na sua arte. Figuras públicas como Martin Scorsese, Morgan Spurlock, Ava DuVernay e Ramin Bahrani, com cedência de material ou de tempo, foram contribuidores-chave para este pequeno sucesso.


O mais recente trunfo da campanha é dar uma oportunidade de seguir as pisadas de Ebert e ser crítico por um dia na versão online do Chicago Sun-Times, o jornal onde em 1967 começou a sua carreira. Se acharem que mereço, contribuam por este link. Basta um dólar.