19 de outubro de 2014

Entrevista sobre "Delicious"


Foto retirada da página do evento

“Delicious” é um filme britânico de 2013 que passou pelo Porto em Setembro num evento único organizado por Susana Grilo. O filme foi exibido na presença da realizadora/produtora Tammy Riley-Smith, do compositor/produtor Michael Price (que a seguir deu um concerto com Peter Gregson), e do protagonista Nico Rogner que faz de Jacques.
Após o filme houve um quarto de hora para uma entrevista constantemente interrompida por risos onde se falou de coisas tão díspares como ananases de arremesso e facas afiadas que são apenas itens de amor,


Antestreia: Quando decidiu fazer o filme, imaginava que a comida seria o tema do momento? Temos uns cinco filmes recentes sobre comida ou chefs.
Tammy Riley-Smith: Não Absolutamente. Copiaram-nos todos. É inacreditável. O que foi estranho é que lembro-me de ter uma reunião com um distribuidor há alguns anos e ele me dizer “Não, não, não. Filmes de comida, não e não. Hollywood não faz filmes de comida.” De repente, todos estão a fazer filmes de comida. Porquê? Não sei. Estamos todos muito interessados. É muito romântico, muito sexy. Têm alguma ideia do porquê?
Michael Price: Foi uma resposta muito boa.
A: Penso que o que todos têm em comum é o amor, porque a comida liga as pessoas.
TRS: E é interessante que o nosso filme foi muito bem recebido no Pacífico Sul, na Ásia, onde a comida é muito importante. Liga as pessoas e a família. A comida une, é uma linguagem única.

A: Michael, no Q&A mencionou que se sentia como o pai e o filho [ao ser produtor e trabalhador no filme]. Nesta etapa da sua carreira – com um Emmy e a trabalhar em “Sherlock” – sente que ainda precisa de estar no controlo do que faz para o fazer como quer?
MP: Penso que tem mais a ver com como nos envolvemos no projecto. Que forma a colaboração toma. Há alguns realizadores com quem trabalhei, com os quais tenho uma maravilhosa e longa relação de confiança. Não sinto de todo necessidade de estar no controlo. Sinto a necessidade de estar numa relação boa e estimulante, onde trabalhamos juntos e o resultado é melhor do que qualquer um pensaria. Por exemplo, temos “Sherlock” e é uma equipa mesmo, mesmo carinhosa. Apoiamo-nos todos mutuamente. Por isso, mesmo não estando à frente de Sherlock, desfruto activamente dessa relação. Mas também penso que se tens outras oportunidades na indústria, então, de vez em quando, é tentador fazer algo dessas oportunidades. Por isso pedimos de volta alguns favores que não tínhamos pedido antes. Muitas das pessoas que trabalharam em Delicious” são pessoas com quem a Tammy trabalhou antes, eu trabalhei antes. Torcemos-lhes os braços com ofertas de salário muito baixo, mas com muita diversão para que viessem fazer o nosso filme. Não penso que o controlo seja algo que eu procure, mas sim bons relacionamentos.

A: Nico, é um bom cozinheiro? Não consigo imaginar um alemão que saiba cozinhar.
Nico Rogner: Na verdade sou um bom cozinheiro.
MP: Praticaste não foi?
NR: Pratiquei num restaurante Michelin. Estava na cozinha e as pessoas não sabiam que estava a treinar para um filme. Pensavam que estava a trabalhar com eles. Lá há mesmo uma hierarquia e é muito importante. Tive alguns problemas com eles, acho que estavam com medo. Viram um novo tipo e pensaram que queria o lugar deles. E enquanto estudava na escola dramática trabalhava nos mais fabulosos restaurantes de Roma. Trabalhava para pagar a renda e ter dinheiro.
TRS: E foste convidado por um dos teus melhores amigos para fazer a comida do casamento. Ele mostrou-me fotos da comida. Devias ter feito a comida do nosso filme. Era fantástica.
NR: Adoro. Acho que é umas das coisas mais maravilhosas do mundo. Comida.
TRS: Ele nunca me convidou para jantar. Nem uma vez. Nunca.
A: E a personagem alemã, o Adolf. Tem esse nome porque é alemão, porque é maléfico ou já estava no guião?
TRS: É uma alcunha. O nome dele não é Adolf, essa é a alcunha que lhe deram por ser tão mau.
NR: Tem razão sobre a comida na Alemanha. Em algumas áreas. Tal como Londres mudou nos últimos dez anos, Berlim e outras cidades assim grandes têm muita mais influência dos arredores - Itália, França, Escandinávia – e hoje em dia pode encontrar comida fantástica. [pausa] Tinha de o dizer.
A: Não se preocupe. Londres também é só fish and chips.
NR: Não é! Adoro a comida de Londres. Estive em Canterbury quando tinha doze anos – os meus pais mandaram-me para Inglaterra para aprender inglês – por isso estava com uma família, ia à escola e assim. A comida não era como quando vou ao restaurante com vocês. Agora adoro-a, mas aquilo foi há muito tempo. A comida era má.

A: Tammy, há muito vómito no filme, mas não o vemos. Talvez só uma vez. Stella fá-lo fora das câmaras. Isso foi para manter o filme “apetitoso”?
TRS: Não, não queria o filme feito de qualquer jeito. Penso que quando estávamos a ensaiar falamos todos sobre quão negro iriamos. E essas discussões foram muito importantes. Já estive num lugar negro, mas penso que o guião foi ainda mais negro. Fui encorajada a recuar um bocado. Esse equilíbrio entre luz e trevas - quanto vómito vamos ter – era muito importante ir até esse lugar, mas o que mostramos, essas decisões eram ainda mais importantes. Queria mostrar especialmente a escova de dentes., queria mesmo mostrar isso. Não para chocar o público, isto é real. É uma história verídica. Queria fazer um romance. Para mim nas comédias românticas vemos duas pessoas e o que as separa são os obstáculos no guião. Isso não é a vida real. Na vida real são eles. O que separa as pessoas são as personalidades. Os malditos demónios interiores mantêm-nos afastados. Tinha de ir ali.
A: Falou da cena da escova de dentes. Jacques também usa muito a escova. Foi de propósito para fazer um contraste?
TRS: Sim. Era muito importante. A comida era sempre a arma. Temos a baguette que é usada como pistola, temos…
MP: O ananás.
TRS: O ananás! Temos várias coisas das quais não me apercebi na altura, mas sim, são importantes esses motifs. A saúde e o abuso de comida.
NR: Se me permitem, no processo, como chegamos ao vómito, isso é mostrado. Tudo o que acontece até ela ir à casa de banho para vomitar. Não percebo o propósito de mostrar mais.
A: O filme é muito limpo.
MP: Penso que é mais sobre a vertente emocional. O que gostei particularmente no modo como a Tammy filmou e enquadrou essas duas cenas, foi aquele momento em que vemos o reflexo da Stella no espelho e na verdade o que vemos é algo muito físico e chocante de ver. Estamos conscientes das emoções que a conduzem e do que vai acontecer. Não acho que nos possamos distrair por ver demasiado. Simplesmente penso que nos devemos concentrar no que é realmente importante.
TRS: Sim. É mesmo isso. Alguém diferente usaria o vómito, sujaria tudo, só para chocar a audiência. Não para comover a audiência. Nós preferimos comover as pessoas. Não há nada de limpo neste filme. Só não é de horror, de género. É sobre o que se está a passar com a personagem.

A: Há uma canção francesa no filme. Foi uma homenagem à personagem francesa [Jacques], ou já estava pensada ainda antes de a personagem ter essa nacionalidade?
MP: A banda sonora nos filmes normalmente tem duas partes. O score que eu escrevi, e as canções que nós escolhemos. Incluindo um par de canções do Cícero Buck, e as músicas que escolhemos na edição, canções independentes de artistas emergentes…
TRS: da minha irmã.
MP: Da irmã da Tammy. Mas o que era importante era a estética da música da comédia romântica. Tanto a Tammy como eu trabalhamos independentemente em filmes da Working Title – responsável pelo “Love Actually”, “Bridget Jones Diary” e outros assim – eu trabalhei em vários deles. E há algo especial quando se consegue trazer a energia de uma canção para o teu filme e contar a história desse momento só pela canção. Tentamos várias coisas na edição. Tentamos coisas mais agressivas, tentamos coisas mais próximas do score, mas o que descobrimos foi novamente o balanço de luz e trevas. Há alegria e celebração, mas também vamos muito rapidamente para o canto oposto. Pegamos nesses momentos de festa, os momentos de riso e os momentos de alegria, para que sinta essa necessidade. Porque também os momentos comoventes eram sinceros. Não trivializa, cria um balanço.

A: Nico, também teve de lidar com a mudança de nacionalidade. Teria preferido em interpretar um italiano devido à sua ligação com a cozinha italiana?
NR: De todo. Passei metade da minha vida em França. Dum ponto de vista exclusivamente gastronómico, pessoalmente, sou mais italiano que francês. Mas só porque considero a italiana a melhor comida do mundo. Mas por outro lado temos a ligação Paris-Londres que é apenas um túnel. É algo que vivenciei no filme. Chega-se lá em duas horas! São duas capitais numa viagem de comboio de duas horas. Por isso para mim faz sentido [Jacques ser francês]. Foi ideia da Tammy. Ele em tempos foi italiano, depois escocês, depois…
TRS: Eu achava que o Nico era francês.
NR: Para mim fazia sentido que ele fosse francês. Eu viva em Paris nessa altura.
TRS: Fiquei em choque quando descobri que na verdade eras alemão.
(risos)
A: agora devia dizer “nós britânicos nunca esquecemos”. [citação do filme que Stella diz a Nico a propósito de não gostar dos franceses devido a um acontecimento ancestral]
TRS: Nós nunca esquecemos. [Para mim] Provavelmente também tivemos alguma batalha contra os portugueses a algum momento, nunca esqueceremos.
A: Não, nunca. Somos aliados há quase mil anos. Nem uma guerra.

A: Voltando ao tema anterior, há uma arma no filme. A faca de cozinha.
TRS: Ele é bom. Pode fazer uma tese sobre o meu filme?
A: Certamente. É como se fosse uma pista sobre o passado de Jacques...
TRS: Mas não é uma arma. Essa é a parte interessante. Nunca é uma arma. É uma prova de amor. Algo que era da mãe dele.
A: Teve de lidar com a dualidade.
NR: É o utensílio mais importante que ele tem. É aquilo com que ele vive. Quando descobre o amor pela comida, o que consegue fazer com ela … Algo que nunca vemos no filme: o primeiro objecto que arranjei quando estava a pesquisar para a personagem, de onde ele veio, arranjei uma faca, uma faca de cozinha, que para mim foi uma faca de cozinha que trouxe de casa da minha mãe. Nunca a usei, nunca a vêm, mas tinha-a sempre comigo, no meu saco ou assim. Não é uma arma é um utensílio que faz parte da identidade dele, que o ajuda a seguir em frente. Vê-se que quando é assaltado não sabe usá-la como arma.
A: É toda a identidade dele porque é simultaneamente uma faca como a que ele roubou e o fez ser preso, é a única ligação à falecida mãe e é usada par cozinhar, a vida dele.
TRS: é mesmo bom.
NR: Qual era a questão?
A: Geriu a personagem com uma faca também metaforicamente.
NR: A determinado momento uma coisa muito importante para a personagem era o boxe. Tive aulas de boxe e tudo mas acabamos por não o usar. Mas permaneceu como algo da personagem que esteve sempre comigo. Para o espectador não faz diferença, mas ajudou-me a estar ligado a algo. Muito do trabalho que faço fora das câmaras não se vê. A faca é um utensílio, pode dizê-lo assim. Está a fazer uma análise muito boa.
TRS: Posso dizer que são as melhores respostas de sempre. Não tinha pensado em metade destas coisas. É incrível. É muito satisfatório ouvir essa interpretação.
A: Obrigado. Penso que o momento chave da faca é quando ele está a preparar comida para a Stella e tem de a ensinar a usá-la gentilmente, para não cortar os dedos. E ela poderia tê-la usado como uma arma, para se ver livre dele.
TRS: Penso que o público espera isso.
A: Esperamos algo. Podia ser muito cru e bruto, mas será provavelmente o momento mais ternurento do filme. Obrigado pelo vosso tempo.
Todos: Obrigado.

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