30 de julho de 2018

"King of the Belgians" por Nuno Reis

Ao longo das suas mais de vinte edições, Avanca tem sido um festival fora do comum. As pessoas que lá se reúnem podem não ser as mais famosas, mas são, sem excepção, boas pessoas e amam a arte. Aliás, como é um festival para todos os formatos (tem cinema, televisão, vídeo, curtas, longas, animação, documentário, ficção, experimental, conferência académica) tem pessoas que não se encontram noutros festivais. Todas vão a festivais, mas não se cruzam todas em mais nenhum lugar do mundo. Por isso a selecção é sempre diversa e pouco convencional – muitos dos títulos não voltam a ser exibidos em festivais nacionais – mas há sempre grandes pérolas pelo meio. Este ano sem grande surpresa o vencedor foi "King of the Belgians", dos repetentes Peter Brosens e Jessica Woodworth que competiram pela terceira vez no certame Desta vez com uma história tão mirabolante que é credível e tão simples que é fascinante.
O argumento acompanha Duncan Lloyd, um documentarista contratado para fazer um filme sobre o rei Nicholas da Bélgica. Tem permissão para gravar tudo de forma a editar uma peça que evidencie o maravilhoso rei que os Belgas têm a governá-los. No decorrer desse projecto, vai com o monarca para Istanbul onde participará numa cerimónia que demonstre o apoio da Bélgica à adesão turca à a´União Europeia. Só que acontece uma situação delicada no seu país e, como quase simultaneamente houve um problema nas radiações cósmicas, não tem forma de comunicar. O Rei tem de voltar urgentemente a Bruxelas o que a Turquia vê como uma ameaça à integração europeia. Protocolo, patriotismo e desejo de gravar algo extraordinário colidem e não há tempo a perder.
O filme vinha classificado como comédia o que é sempre um pouco suspeito. Esta dupla tem feito documentários e vários filmes sérios. Por isso a mudança brusca de género foi ainda mais surpreendente. Os vários anos de Brosens como documentarista permitem-lhe brincar com o género à vontade. Esta dupla só teve de adicionar algum do peculiar humor belga e retratar as estranhas peripécias que alguém muito azarado teria de enfrentar ao atravessar países menos desenvolvidos do que a capital da Europa. Vai conhecer o melhor da humanidade. Vai perceber o que realmente importa na vida. Vai ser uma pessoa melhor e libertar o governante melhor que todos sabiam que ele podia ser.
A equipa artística é simplesmente perfeita. Estão todos adequados ao papel nos momentos formais e depois são humanos interessantes de conhecer como Lloyd vai provar nas perguntas pertinentes que vai fazendo casualmente. Não era pedido que fossem perfeitos, era pedido que fossem humanos e conseguiram. De uma perspectiva técnica não havia muito a mudar. A câmara nem sempre está num ângulo plausível, mas faz parte das artimanhas do realizador para gravar quem não sabe que está a ser filmado. O argumento é delicioso e tem uma construção meticulosa que os vai despojando de bens materiais enquanto os enriquece de experiências de valor imenso.
Com uma dose de humor inesperada e uma sagacidade extrema sobre os problemas que assolam a Europa do século XXI, “The King of Belgians” foi o claro vencedor em todas as competições de Avanca onde participava. Saber que vem aí uma nova aventura – uma sequela – dá uma enorme vontade de aplaudir. Depois do Rei dos belgas, pode ser Imperador dos europeus, Líder da Humanidade, ou Governante do Universo só para sugerir algumas possibilidades de prosseguir com a história. É um feel good movie feito com mestria, humor e arte. Que mais se podia pedir?



King of the BelgiansTítulo Original: "King of the Belgians" (Bélgica, Bulgária, Países Baixos, 2016)
Realização: Peter Brosens, Jessica Woodworth
Argumento: Peter Brosens, Jessica Woodworth
Intérpretes: Peter Van den Begin, Lucie Debay, Titus De Voogdt, Bruno Georis, Goran Radakovic, Pieter van der Houwen
Fotografia: Ton Peters
Género: Comédia, Drama
Duração: 94 min.
Sítio Oficial: http://kingof.be/

19 de julho de 2018

"Offline" por Nuno Reis

Devo confessar que este filme não me convenceu quando surgiu. Estava a estudar marketing digital e esta obra televisiva sobre o mundo digital pareceu uma péssima ideia. Mais recentemente, enquanto percorria a carreira de Daniela Love, calhou ter uma tarde livre que decidi aproveitar para ver os filmes dela que ainda não conhecia. Seria um longo caminho, pois à data apenas tinha visto três. “Offline” está disponível no site da RTP por isso foi a escolha imediata. A minha única garantia é que também lá veria a Sara Barros Leitão que tem primado nas suas escolhas profissionais. Vê-la como Navegante da Lua no trailer deixou-me muito receoso – todos tomamos decisões das quais nos arrependemos – mas tinha de ser. Estes filmes tendem a desaparecer e quando saísse do site da RTP, talvez não tivesse nova oportunidade de o ver.

Os créditos iniciais e os efeitos escolhidos são logo razão para desligar sem pensar duas vezes. Só que isso seria um erro. O filme rapidamente entre nos eixos e leva-nos numa odisseia de duas horas onde brinca com temas actuais de forma inteligente e expõe o ridículo da sociedade e das micro-tribos que surgem sem ridicularizar ninguém. Claro que entra em estereótipos e exageros, mas é de forma engraçada e não ofensiva.


A narrativa está dividida em várias estórias e tem diferentes focos. Por um lado tem o professor de História que não se rende às tecnologias do dia-a-dia. A vizinha é o oposto. Como tem problemas a socializar, conseguir refugiar-se e agora é tão dependente das tecnologias que não sabe viver doutra forma. Os restantes são os jovens que vemos. Os youtubers a fazerem vídeos ridículos para ganharem visualizações e seguidores. Os jovens que fazem um deslizar no Tinder em vez de saírem para conhecerem pessoas com gostos semelhantes. Pessoas que falam no Facebook em vez de construírem relações sólidas. E depois há o verso da moeda. Essas pessoas no mundo offline. Quem são os verdadeiros amigos? Quem está lá para eles? Quem é realmente o seu grupo?


Foi uma aposta arriscada. Por um lado nasce como a ideia de uma jovem sem currículo. Foi entregue a um realizador sem currículo que não teve medo de fazer um filme com umas invulgares duas horas de duração. Critica a plataforma televisiva sabendo que está condenado a só ser exibido lá. Faz pensar como os outros e sobre nós mesmos. Mostra que no fundo somos todos meros indivíduos perdidos na famosa e enorme aldeia global e que as hiperligações na verdade não nos unem, só nos afastam. Contudo, também diz que com a Internet do nosso lado podemos estar sempre em contacto com quem nos quer bem. Podemos encontrar pessoas com os mesmos gostos. Podemos continuar ligados aos nossos amigos mesmo que do outro lado do mundo. Mas as amizades e os amores, não se fazem online. É preciso trabalhar para isso de corpo e alma, não com ratos e teclados.


O elenco diversificado retrata as várias personagens que o mundo virtual tem. As estrelas oficiais são Iris Cayatte e Duarte Gomes. Ela tem momentos arrepiantes e ele deve ter tido dificuldades em fazer de tão info-excluído, mas a personagem mais incrível é a Sailorspoon. Sara Barros Leitão transfigura-se e dá-nos uma interpretação fiel das aberrações do YouTube, ao mesmo tempo que tira a peruca e é Carla, das pessoas mais sensatas e bondosas que este mundo tem. Seria um exagero dizer que seguiria o canal da Sailor Spoon, mas espreitaria de vez em quando.

É uma obra inteligente e plenamente conseguida. Uma comédia com pés e cabeça, que sabe ser absurda q.b.. Dos melhores filmes que já vi sobre o mundo digital e digno de vários visionamentos. É uma pena que não passe mais vezes na televisão e que o estigma de ser nacional mate a curiosidade dos que mais teriam a aprender.

OfflineTítulo Original: "Offline" (Portugal, 2016)
Realização: Guilherme Trindade
Argumento: Ivone Rodrigues, João Harrington Sena , Guilherme Trindade
Intérpretes: Duarte Gomes, Iris Cayatte, Sara Barros Leitão, Daniela Love, João Nunes Monteiro, João Harrington Sena, Miguel Lemos, Emilia Silvestre, Ana Bustorff
Fotografia: Mário Santos
Género: Comédia
Duração: 127 min.
Sítio Oficial: https://www.facebook.com/OfflineFilme

9 de julho de 2018

"Every Day" por Nuno Reis

Tudo começou no Youtube. No distante ano de 2012 saiu nos meios online uma mini-série inovadora onde meia centena de pessoas diferentes interpretaram a mesma personagem, Alex. Essa experiência mais tarde inspirou um filme sul-coreano e um livro de David Levithan. Agora é chegada a vez de Hollywood fazer um filme de raiz com a mesma temática.
Quando Justin acorda, sente-se diferente. Vai para a escola, mas depois faz gazeta para passar o dia com Rhiannon, a sua namorada. Têm um dia maravilhoso que Rhiannon diz ter sido o melhor em muito tempo. Contudo, no dia seguinte ele não se lembra de nada. Porque Justin não era ele mesmo. Estava “possuído” por A, uma entidade que diariamente saltita de corpo em corpo de forma involuntária. Sempre da mesma idade aproximada, nunca repetindo pessoas. Por vezes esse corpo tem limitações, outras está tudo perfeito. Desde que foi Justin está apaixonado por Rhiannon e se deseja ter alguma espécie de futuro com ela, vai ter de lhe revelar a sua extraordinária condição.
Pensando no filme de forma isolada, tem tudo o que os amantes do fantástico ligeiro podem desejar. Primeiro é o regresso da célebre Orion Pictures que tantos filmes nos deu no passado. Depois tem este ser que tanto pode ser um demónio, como um espírito ou uma experiência fracassada. Todos os géneros ficam incluídos. E quando percebemos que é apenas um romance adolescente, a desilusão não é muito grande. As possibilidades são imensas com esta temática. Funcionaria como comédia, como drama, como aventura, como romance, como espionagem… foi até demasiado prudente na aproximação escolhida. Aflora alguns temas, mas limita-se ao romance difícil e à questão ética que assola A neste limiar da idade adulta.
Quem cresceu a ver "Quantum Leap" deve ter achado que era uma oportunidade de voltar à ideia de saltitar de corpo em corpo de forma a corrigir as vidas de alguém. Em "Every Day" A faz o oposto. Não lhes estraga o dia, mas também não os torna melhores. Vive um dia de cada vez pensando em si a longo termo. O contacto com Rhiannon vai fazê-lo mudar e, à semelhança do que vimos em "About Time", aprenderá que tem de viver cada dia como se fosse especial. Quem cai na banalidade de ter um corpo, uma casa, um emprego, uma família, um grupo de amigos, esquece-se como cada dia é precioso. Ele vive em tempo emprestado e a cada dia pode-lhe acontecer algo mágico ou tenebroso que outro veria como normal.
Quanto ao elenco, Angourie Rice é quem tem mais tempo de ecrã e faz um bom trabalho com a personagem frágil que lhe foi confiada. Consegue ter uma evolução e crescer com a personagem. Os seus pais, Maria Bello e Michael Cram, são personagens menores. Entre os vários A, Justin (Justice Smith) e Alex (Owen Teague) são os mais importantes, mas todos cumprem com distinção.
Michael Sucsy que já nos trouxe personagens desalinhadas do seu mundo em "The Vow", volta a cumprir o que era exigido num filme que desperdiça potencial. Pedia-se mais ao argumento de Jesse Andrews (que nos deu o maravilhoso "Me, Earl and the Dying Girl"). Pedia-se que fosse mais do que tinham sido a série e o livro. Sendo a quarta versão, tinha a obrigação de ser melhor do que todos os outros. Contudo, a culpa não é só da classificação etária visada, mas do próprio formato. É material de tele-filme feito para cinema. Seria muito louco acreditar que um regresso ao formato digital e uma exploração do conteúdo interactivo eram o destino perfeito para este tipo de material?


Every DayTítulo Original: "Every Day" (EUA, 2018)
Realização: Michael Sucsy
Argumento: Jesse Andrews (baseado no livro de David Levithan)
Intérpretes: Angourie Rice, Jeni Ross, Justice Smith, Owen Teague, Maria Bello, Michael Cram
Música: Elliott Wheeler
Fotografia: Rogier Stoffers
Género: Drama, Fantástico, Romance
Duração: 97 min.
Sítio Oficial: https://www.facebook.com/EveryDayTheMovie/

"Love, Simon" por Nuno Reis

A nossa sociedade está a evoluir. Se antes o amor homossexual era algo reservado para personagens menores ou para detalhes do passado (existem exemplos de ambos em "Scott Pilgrim vs. The World"), cada vez é dado mais destaque. Isso não foi feito adaptando histórias heterossexuais existentes, mas pegando em material original escrito de propósito para esse fim. "Call Me By Your Name" funcionou muito bem com o grande público, mas apontava para adultos. 2018 está a ser um bom ano para a diversidade nos filmes para jovens adultos.
Em 2014 "The Fault In Our Stars" parecia que ia desviar a produção da normalidade, mas foi um caso quase isolado. "Paper Towns" do mesmo autor chegou logo depois e não conseguiu igual sucesso. Em 2017 o título mais disruptivo para esse escalão etário foi "The Space Between Us" onde a amizade e o amor não querem saber em que planeta se nasceu. Mas continuavam a ser humanos, brancos e heterossexuais num romance de cordel. E tivemos "Everything, Everything" onde um outro tipo de barreira separava dois jovens vizinhos.
Este ano já tivemos uma lésbica a enfrentar os dilemas da sua sexualidade em "Blockers" e a ser recebida com amor e compreensão pela família e amigos quando sai do armário. Tivemos uma história de amor entre duas pessoas em que uma delas muda de género e raça diariamente, dizendo que os sentimentos são cegos em "Every Day". E agora chega-nos um filme sobre como é ser homossexual no secundário. Uma fase crítica do desenvolvimento do adolescente onde faltavam exemplos com frontalidade. A televisão estava muitos anos à frente com desenvolvimento de personagens diversas ao longo de anos, mas o cinema, que tem de chegar às massas e impactar em cerca de hora e meia, ainda não tinha encontrado o rumo. Até chegar Simon.
Na verdade a televisão tem um grande peso no rumo deste filme. O realizador é Greg Berlandi das séries DC e a dupla de argumentistas já nos deu "This Is Us". Portanto, isto é quase batota. "Love, Simon" podia ser a história de um qualquer adolescente. Tem os seus amigos de sempre e alguns mais recentes. Tem colegas na escola e participa em actividades extra-curriculares. Tem uma família de primeiro grau em que todos se adoram. Tem os problemas normais de um jovem da sua idade e mais um segredo. É homossexual. Quando descobre que há outro não-assumido na escola, começa a corresponder-se e partilham sentimentos. Mas algo acontece e a vida de Simon fica muito mais complicada do que já era.
Ao princípio o trunfo do filme parecia ser o elenco. Vejamos. Nick Robinson é uma cara familiar da série "Melissa & Joey", esteve em "The 5th Wave", "Jurassic World" e em "Everything, Everything". Um jovem normal. A sua amiga de sempre Leah é interpretada pela australiana Katherine Langford que o mundo inteiro conhece como Hannah de "13 Reasons Why". A new girl é Alexandra Shipp, co-protagonista de "Tragedy Girls", a Storm na saga dos jovens X-Men. E o quarteto central é completado com Jorge Lendeborg Jr., ainda um relativo desconhecido com pequenos papéis no MCU e no Transformersverse. Como se estes não bastassem entre os secundários estão Keiynan Lonsdale (Kid Flash nas séries DC) e Logan Miller de "Scouts Guide to the Zombie Apocalypse" e "Before I Fall". Os pais do protagonista são Josh Duhamel (irreconhecível) e Jennifer Garner que é há vários anos a mãe ideal em imensos filmes.
No entanto o filme não tem sucesso por causa destas estrelas. É simplesmente porque trata uma situação normal como uma situação normal. Mostram Simon como um rapaz com os problemas normais, as dúvidas normais, as amizades normais. Não o tentam estereotipar como gay (há um desses no filme), mas como um adolescente. Ele próprio tem dificuldades em ver-se com "roupa gay", ou apenas a dançar. Simon é Simon e não vai deixar de ser ele mesmo só porque os outros sabem algo novo sobre ele.
É tão diferente do que se tem visto que surpreende e nos apanha desprevenidos. Tem momentos deliciosos de ilusões sobre quem será o seu amor secreto, tem momentos intensos onde é chantageado para fazer algo errado. E com tudo isso vai contando uma história como tantas outras. Algo tão simples que não se percebe porque não tinha sido feito antes. O segredo é que está a banalizar uma situação que já há muito devia ter sido banalizada. Tal como quando America Ferrera foi contratada para "Superstore" e se apercebeu que tinha conseguido um papel que não tinha sido escrito para uma latina. Os anos Trump estão a fazer com que o mundo das artes se rebele de todas as formas possíveis e a integração parece ser o caminho.
Tem uma moral como seria de esperar. O final era expectável e previsível. Daqui a uns anos talvez ninguém se lembre do filme. Ou talvez uns milhões digam que foi o filme que lhes mudou as vidas. Se aquele amor por correspondência vai funcionar ou durar não sabemos. Sabemos é que Simon tem de ficar em paz consigo mesmo e reafirmar o seu lugar no mundo. Nada mais nele tem de mudar, o mundo é que tem de o aceitar.


Love, SimonTítulo Original: "Love, Simon" (EUA, 2018)
Realização: Greg Berlanti
Argumento: Elizabeth Berger, Isaac Aptaker (baseados no livro de Becky Albertalli)
Intérpretes: Nick Robinson, Katherine Langford, Alexandra Shipp, Logan Miller, Keiynan Lonsdale, Jorge Lendeborg Jr., Jennifer Garner, Josh Duhamel
Música: Rob Simonsen
Fotografia: John Guleserian
Género: Comédia, Drama, Romance
Duração: 110 min.
Sítio Oficial: https://www.foxmovies.com/movies/love-simon

"Game Night" por Nuno Reis

Com os jovens a casarem cada vez mais tarde e a adiarem os filhos ao máximo, algures entre os loucos anos da juventude e o gerar descendência, estão uns belos anos em que se tem todos os confortos da vida adulta (dinheiro), mas ainda alguma da rebeldia da juventude (liberdade). A noção de diversão mudou e já não envolve saídas barulhentas e copos. Ocasiões onde se reúnem os amigos para uma prova de vinhos, ou uma noite mensal de jogos. O doce fazer de conta que se é adulto deixando as responsabilidades em suspenso. "Game Night" parecia ser mais do que se tinha visto em "Date Night" (e daqui a dias em "Tag"), mas por ter Rachel McAdams lá mereceu alguma atenção. E que bela surpresa. "Date Night" foi tudo o que o trailer prometeu, mas muito mais.
A história acompanha um grupo de amigos que se encontram para uma noite de jogos. Até que o irmão de um deles lhes propõe uma noite diferente. Um jogo de gente rica. Uma espécie de jantar mistério. Ficam (quase) todos entusiasmados e quando um crime tem lugar diante dos seus olhos, acreditam que faça parte do jogo. Mas serão actores contratados ou perigosos mercenários?
Não é difícil pensar em filmes que peguem nessa temática de cruzar realidade com imaginação com protagonistas presos entre ambos. De "Rear Window" a "Gone Girl", passando por "Donnie Darko", "Perfect Blue" ou o obviamente semelhante "The Game", é uma forma muito eficaz de envolver o espectador e de o ir surpreendendo. O que não costuma ser feito é dar o toque leve da comédia. "Game Night" parece ser um filme ligeiro, mas não tem medo de criar algumas camadas de reduzida complexidade para ir mantendo a ilusão. É o melhor de dois mundos entre o thriller e a comédia, mas também sobre a busca por um parceiro de sonho. Que dupla o filme nos dá! McAdams é talentosa, divertida, bonita, um nome sólido na comédia e no romance há vários anos, justificação mais que suficiente para ver qualquer filme. A sua cara-metade nesta aventura é Jason Bateman, o quase equivalente masculino. É um actor consistente, com uma fragilidade que inspira autenticidade e que tem sido presença regular em comédias e dramas de qualidade. De forma quase mágica esta dupla perfeita pega num argumento banal com personagens desinspiradas e dá-lhe uma animação contagiante. Podia ser um filme mediano, com lugares-comuns e piadas reutilizadas de outros, mas em alguns momentos, é real.
O argumento de Mark Perez (do lamentável "Herbie Fully Loaded") foi conduzido por uma dupla de argumentistas tornados realizadores, John Francis Daley e Jonathan Goldstein (ambos escritores de "SpiderMan: Homecoming” e dos dois "Horrible Bosses" entre outros) e parece-se muito com o estilo de filmes que nos trouxeram eficazmente no passado sobre pessoas normais em situações extraordinárias. A produção teve mais custos na componente artística do que em qualquer outra, pois cenários e efeitos foram bastante simples. Foi tudo investido em estrelas que souberam descontrair e fazer fluir como comédia uma tensão nascida da comédia. E tudo isso envolvido naquela boa adrenalina induzida pelo falso stress que se gera num team building ou evento semelhante. São vários géneros e várias sensações que se repetem e alternam numa espécie de lasanha. Esta metáfora deve ter soado tão estranha para quem lê como para quem escreveu por isso convém explicar. Estamos numa era de cinema junk food para fazer dinheiro rápido e vender pipocas e refrigerantes de litro. As receitas habituais são o filme-pizza onde pegam na base de sempre e acrescentam uns ingredientes coloridos em cima para parecer diferente, ou o filme-hamburger onde trituram o que já veio de um outro filme e servem como algo fresco e ousado. Há quem goste disso e quem prefira uma refeição gourmet ou um prato caseiro e as salas de cinema procuram ter oferta para todos os públicos. "Game Night" não é um produto de luxo, mas está longe de ser de lixo. É como uma lasanha congelada: comida simples e rápida, mas que alimenta e é aconchegante e esconde vários sabores. Ainda fast e parcialmente junk, mas diferente de todos os outros.


Game NightTítulo Original: "Game Night" (EUA, 2018)
Realização: John Francis Daley, Jonathan Goldstein
Argumento: Mark Perez
Intérpretes: Jason Bateman, Rachel McAdams, Kyle Chandler, Sharon Horgan, Billy Magnussen, Lamorne Morris, Kylie Bunbury, Jesse Plemons, Michael C. Hall
Música: Cliff Martinez
Fotografia: Barry Peterson
Género: Comédia, Thriller
Duração: 100 min.
Sítio Oficial: http://www.gamenight-movie.com

"Blockers" por Nuno Reis

Um filme sobre duas gerações, onde a que tem mais tempo é a menos interessante.

As crianças podem crescer, podem até amadurecer, mas ninguém as pode obrigar a envelhecer. Cada adulto tem de manter o seu lado infantil vivo para não deprimir com as constatações da realidade que nos torturam a cada instante. Porque ser adulto é uma treta e a única coisa que se aprende com o passar dos anos é que a juventude faz falta. Por isso é que a nostalgia rende tanto. Todos querem voltar a quando foram jovens, felizes, apaixonados e despreocupados. O cinema sabe disso e foi-nos fisgando com remakes e sequelas de filmes desses outros tempos.
Enquanto esses sonantes filmes convenciam ou desiludiam, um outo nicho foi-se impondo. Aquele que retratava o problema como deve ser. Falo de filmes sobre conflitos inter-geracionais como "Freaky Friday ou "Neighbors". De filmes sobre as crises de quem envelhece como "Wild Hogs" e "Grown Ups". De filmes sobre a realidade do amor quando já não se trata apenas de hormonas e sexo, mas de ter uma parceria vitalícia com um amigo contra as amarguras da existência humana. E aí há grandes opções como "Crazy Stupid Love" ou a cena de abertura de "Up". Em todos estes títulos fiz uma coisa terrível: vi-os pelos olhos da geração mais velha. Nada nos faz envelhecer mais depressa do que perceber que já não nos identificamos nos adolescentes rebeldes, mas nos pais que os estão a tentar proteger e a ter momentos de insanidade.
Em "Blockers" isso não aconteceu. A geração mais velha é o foco da narrativa, mas a sua história é tão fraca que era preferível uma curta só com os momentos dos jovens. Isso dito por quem já não se identifica por eles. Nem quero imaginar a reacção de quem esperava ter alguém da sua idade por quem torcer.
Aqui acompanhamos três progenitores, todos com diferentes relações com a sua prole, no momento de viragem que é a noite de finalistas. As filhas são amigas desde que se lembram e fizeram um pacto: tencionam perder a virgindade nessa noite. Como em "American Pie", mas na perspectiva feminina. Julie tem um namorado estável e acha que é a altura ideal. Kayla tem uma curte e acha que é melhor agora do que na faculdade. E Sam não quer ser excluída pelo que o vai fazer com o seu par dessa noite. Só que ela é lésbica não assumida e está a ter algumas dúvidas. Quem não tem dúvidas são os pais que, ao saberem do pacto, se dirigem ao baile para impedirem que as suas meninas se tornem mulheres. O filme tenta mostrar as duas perspetivas, mas falha num ponto-chave. Vamos por partes pois o filme na verdade tem três histórias entrelaçadas.
Lisa (Leslie Mann) é a mãe solteira. Para ela a filha é tudo e sabe que essa relação vai mudar com a ida para a faculdade. Mitchell (John Cena) é casado e tem um bebé. Só agora começa a ver que a sua criança mais velha já é uma mulher e não gosta disso. Hunter (Ike Barinholtz) é o pai divorciado que foi excluído da vida da filha por problemas com o álcool. Foi trocado pelo padrasto e tenta fazer de cada momento juntos algo especial, mas corre sempre mal. Mann sabe fazer comédia e tem um papel decente, com algumas boas frases. Tentam fazer de Cena o protagonista, mas não se sai nada bem neste papel cómico tão físico como escatológico. Barinholtz é o elemento estranho. Por vezes contra a corrente, sempre um anti-herói, mas um pai dedicado. Por ter um estereótipo tão vincado e mau, acaba por superar as expectativas.
Entre as jovens encontramos Kathryn Newton, a jovem que motivou a colocação dos três cartazes a caminho de Ebbing, Missouri (e estrela televisiva em "Big Little Lies" e especialmente "Sobrenatural" onde teve direito a spinoff), Geraldine Viswanathan das séries "Miracle Workers" e "Janet King" que parece ter futuro na comédia, e Gideon Adlon que será a menos experiente (apena dois anos de trabalho regular), mas a quem deram a personagem mais complexa. O problema é que o filme podia ter um bom equilíbrio entre pais e filhas, mas por ter sido escrito por homens, ou talvez por não quererem afastar o público masculino jovem, não se esforça em mostrar estas personagens. São simplesmente os estereótipos referidos na sinopse quando era tão fácil fazer algo mais equilibrado, próximo de "Superbad". O mais grave é que retiram tempo de tela a este filão de talento por explorar, para nos darem humor brejeiro e por vezes mau. E a única vez que fogem ao convencional, é nas duas cenas de Gary Cole cuja descontracção contrasta imediatamente com os stressados pais protagonistas.
Um desperdício de tempo e dinheiro, que só se aproveita pela mensagem politicamente correcta incontornável. Já que o filme seguiu o caminho confortável das ideias recicladas, seria pedir muito, uma sequela na universidade estilo "Sisterhood of the Traveling Pants" onde não usassem os pais para pouparem no orçamento?
Ou, para ser polémico, porque não fizeram este filme com os pais a impedirem os filhos de terem sexo?
BlockersTítulo Original: "Blockers" (EUA, 2018)
Realização: Kay Cannon
Argumento: Brian Kehoe, Jim Kehoe
Intérpretes: Leslie Mann, John Cena, Ike Barinholtz, Kathryn Newton, Geraldine Viswanathan, Gideon Adlon
Música: Mateo Messina
Fotografia: Russ T. Alsobrook
Género: Comédia
Duração: 102 min.
Sítio Oficial: https://www.uphe.com/movies/blockers