25 de outubro de 2020

"Borat Subsequent Moviefilm" por Nuno Reis

Quando Cohen disse que não poderia voltar a fazer de Borat por se ter tornado famoso, todos acreditamos. O mundo tinha ficado marcado de forma indelével pelo exótico repórter. Catorze anos depois - com algumas personagens falhadas, mas um lugar especial no Cinema do século XXI – Cohen voltou ao ataque. Era necessário? A resposta curta é “Sim, completamente”. Os Estados Unidos entraram numa espiral de loucura que 2020 não apaziguou. A aposta da Amazon neste trunfo não tinha nada de arriscado (todos os nomes do entretenimento estão unânimes que Trump tem de ir embora depressa) e a publicidade gratuita que a campanha presidencial traria a esta nova plataforma seria bem-vinda. Convém admitir que entramos numa fase ímpar em que já não há uma luta entre estúdios ou canais, mas entre plataformas. Se o confinamento fortaleceu a estabelecida Netflix e Setembro foi o despertar da Disney, Outubro traz a Amazon a espreitar o pódio com cartas na manga.
Recordo-me perfeitamente da desilusão que tive quando fui confrontado com "Borat" numa sessão surpresa em Sitges. O seu estilo documental misturado com a sátira social e o ataque direto à cultura Cazaque (e vários países da região por arrasto) foi excessivo. Até hoje não percebo como se pode considerar melhor argumento uma obra de ficção que é construída como documentário. Então foi pré-escrito, ou foi editado consoante o material conseguido? No entanto, tinha percebido "Ali G Indahouse". Foi com este "Consequent" que percebi o porquê: diferenças culturais. Um filme feito para Inglaterra é bem interpretado por Portugal. Os países estão ligados à séculos e a diferença é mínima. Um filme feito para americanos é uma questão completamente diferente. Aqui podem ridicularizar um países distante do qual nunca ouviram falar. Mas o verdadeiro foco de crítica são os americanos. E o consumo de televisão americana e da sua realidade tão distante da nossa, ajuda em muito a perceber porque este filme faz falta. Borat passou catorze anos na prisão pelo seu crime de leza-pátria. O Cazaquistão é agora mal visto em todo o mundo e o plano para mudar isso é o Cazaquistão oferecer uma prenda a Trump para passar a ser uma das suas ditaduras amigas. Borat, como grande autoridade no mundo americano, tem assim uma oportunidade de se redimir. A sua missão é levar um símio até Mickeal Pence, o segundo homem mais poderoso do regime.
A sequela vai então repetir a fórmula exacta do que funcionou no primeiro filme. Louco, ofensivo e completamente parvo. Com a diferença que na sua odisseia pela EUA vai encontrar além de muita gente ignorante, alguma gente boa. Fica difícil saber quanto do que vimos é real, mas cada vez é mais credível que seja tudo. Os americanos retratados são um perigo para eles próprios e por vezes para os outros e, aquilo que há uns anos se acharia impossível, hoje em dia e entre eles é bem provável. O argumento é novamente construído para dar um fio condutor a episódios aleatórios. A colaboração na escrita de Sacha Baron Cohen com o seu parceiro de longa data na loucura, Anthony Hines, continua a dar frutos. À equipa juntaram-se Dan Swimer (faz sentido se pensarmos na sua série "Grandma’s House") e Nina Pedrad (escritora de "30 Rock" e "New Girl", não confundir com a irmã Nasim) para definir o rumo da história que se foi desenrolando no meio de uma pandemia. Um filme louco, num país louco, numa época louca. E ainda assim, Borat continua a apontar a hipocrisia de um país que se auto-entitula o mais avançado do mundo.
Infelizmente os imensos escândalos utilizados para manchar a campanha republicana à presidência retiraram-nos a surpresa de saber que desta vez Borat é auxiliado pela filha (interpretada pela actriz búlgara Maria Bakalova) que vai ter o choque cultural de uma vida ao saber que as mulheres podem conduzir, não devem viver em gaiolas e podem escolher o marido. Porque na ausência de anonimato para o jornalista, muitas vezes teve de ser a sua filha a dar a cara na rua para conseguir as reacções dos transeuntes. E sim, isto foi capturado por câmaras. Faz-nos pensar o que maisse terá passado. O polémico episódio com Giuliani não é tão mau como o pintam nas notícias (mero isco para mais gente aderir ao serviço e acendalha para as campanhas) nem sequer dos melhores ou mais importantes da narrativa. Este é o filme mais adequado para o momento em que vivemos. Feito em 2020, sobre 2020, lançado em 2020, para ver em 2020. E uma nota para o twist final visto que terá sido dos melhores momentos desta personagem.
Novamente é um filme que deve ser visto como material de introspecção e discussão pelos estado-unidenses, mas trará pouco para quem está de fora. Nõs nunca seriamos dados a teorias da conspiração, pois não?
Borat Subsequent Moviefilm: Delivery of Prodigious Bribe to American Regime for Make Benefit Once Glorious Nation of KazakhstanTítulo Original: "Borat Subsequent Moviefilm: Delivery of Prodigious Bribe to American Regime for Make Benefit Once Glorious Nation of Kazakhstan" (EUA, Reino Unido, 2020)
Realização: Jason Woliner
Argumento: Sacha Baron Cohen, Anthony Hines, Dan Swimer, Nina Pedrad
Intérpretes: Sacha Baron Cohen, Maria Bakalova, Dani Popescu,
Música: Erran Baron Cohen
Fotografia: Luke Geissbuhler
Género: Comédia
Duração: 95 min.
Sítio Oficial: https://www.primevideo.com/dp/0O2UR0DET7Q8BLWJVZL7G5WXZ4

24 de outubro de 2020

"O Ano da Morte de Ricardo Reis" por Nuno Reis

Botelho é um contrasenso. Por um lado, é dos poucos cineastas da velha guarda que se sabe vender nos tempos modernos. Não só o jogo duplo de filme e mini-série que permite receber mais apoios e chegar a mais espetadores, mas especialmente as digressões com os filmes, chegando ao público que nunca veria os filmes (e em espaços onde essas entradas contam para a bilheteira oficial do filme e para os próximos subsídios). Nisso é mais astuto que muitos dos jovens que ainda não perceberam como se devem vender. Pelo outro, tenho sempre dificuldades em considerá-lo realizador de cinema pela extrema teatralidade das suas obras. O recente refúgio em clássicos da nossa literatura veio agravar essa faceta. Devo dizer que não gostei da sua visão d’ “Os Maias” e esperava algo semelhante para esta obra de Saramago, mas, mais uma vez, o livro era tão importante para mim que tive de arriscar e ver o filme. E fiquei agradavelmente surpreendido.
Comecemos por falar sobre Ricardo Reis. Um poeta horaciano (que tem como tema a brevidade da vida e a importância de se disfrutar de cada momento) que por acaso no regresso a Lisboa encontra no hotel uma Lídia, um dos nomes predilectos para os seus escritos românticos. Nesse mesmo hotel cruza-se com Marcenda, um nome mais invulgar para poemas, mas que também o arrebata. O solitário médico pode estar a precisar de mais companhia do que gosta de admitir. Enquanto isso, a PIDE investiga o médico que regressou do Brasil num momento tão oportuno. Na verdade o que o trouxe de regresso à pátria, foi a morte de Pessoa. Dizer que Reis e Pessoa eram amigos próximos não é suficiente. Eles eram mais do que irmãos. Eram facetas complementares do maior agregado de poetas da humanidade que escreveu sob dezenas de heterónimos e em diferentes idiomas. Por um lado eram todos diferentes, mas no seu âmago partilhavam uma alma. E para criar um diálogo entre eles, quem melhor que Saramago? Ainda que na sua vida pessoal fosse comunista, na sua obra é um humanista, esplorando a humanidade e as pessoas antes de tudo o resto. Através de um estudo do monarquismo, do Estado Novo e da literatura pessoana, criou uma obra intemporal, com a requintada ironia de pegar no esoterismo de Fernando e na solidão de Ricardo para fazer o vivo falar com o morto.
O brasileiro adoptivo Chico Díaz foi escolhido para dar vida à personagem principal. O seu rosto familiar de tantas obras foi uma escolha arriscada, mas convence depressa. Como Lídia, temos uma enorme Catarina Wallenstein, uma escolha perfeita. E claro, para a suplantar, apenas Victoria Guerra. Botelho filma a preto e branco com uma fotografia cuidada, levando-nos de volta para os anos 30 e 40. E a terceira cena com Marcenda... faz lembrar quando Ilsa entra no Rick’s Café e nos esquecemos de respirar. Devo dizer que Guerra me parecia demasiado velha para o papel, mas honestamente, quem mais teria esse efeito? Uma nota ainda para Rui Morisson que estava perfeito no seu pequeno papel. Luis Lima Barreto não encaixava no Pessoa que imaginei, mas tem uma calma e um porte que se adequam a um indivíduo que detém o derradeiro conhecimento e a maior experiência que a vida nos dá. Em suma, foi um casting surpreendente, mas que funciona. Tal como o filme.
Mais uma vez o exagero teatral do realizador é algo que se estranha, mas neste caso até se entranha. Porque nos transporta visualmente para a juventude do Cinema, quando a sétima arte ia beber ao Teatro e se apoiava em boas histórias. grandes interpretações e uma esmerada fotografia.”O Ano da Morte de Ricardo Reis” tem tudo isso. Uma história relevante e sempre actual. Actores que após o primeiro visionamento se tornam a única opção para tais personagens. Um requinte visual não homogéneo, mas nas cenas certas para se tornar memorável.
Seja o inimitável Pessoa pela sua criação de heterónimos, seja o enorme talento literário de Saramago para criar as bases de um argumento que nunca poderia dar um mau filme, ou sejam os contactos e experiência de Botelho para gerir uma produção muito mais ambiciosa do que esperariamos. graças a uma invulgar combinação de fatores estamos perante um filme que funciona. Tem quase tudo o que é relevante do livro (recomendo a leitura antes para apreciar pequenas subtilezas na mente de Reis que não passaram para os diálogos), faz um bom resumo da enquadramento histórico para nos lembrar que estamos perigosamente perto de um retrocesso e ainda que não seja um grande filme no seu todo, a soma das partes justifica o visionamento.
O Ano da Morte de Ricardo ReisTítulo Original: "O Ano da Morte de Ricardo Reis" (Portugal, 2020)
Realização: João Botelho
Argumento: João Botelho (baseado no livro de José Saramago)
Intérpretes: Chico Díaz, Luís Lima Barreto. Catarina Wallenstein, Victoria Guerra, Hugo Mestre Amaro, João Barbosa, Rui Morisson
Música: Daniel Bernardes
Fotografia: João Ribeiro
Género: Drama
Duração: 129 min.
Sítio Oficial: https://www.ardefilmes.org/YDRR/