Botelho é um contrasenso. Por um lado, é dos poucos cineastas da velha guarda que se sabe vender nos tempos modernos. Não só o jogo duplo de filme e mini-série que permite receber mais apoios e chegar a mais espetadores, mas especialmente as digressões com os filmes, chegando ao público que nunca veria os filmes (e em espaços onde essas entradas contam para a bilheteira oficial do filme e para os próximos subsídios). Nisso é mais astuto que muitos dos jovens que ainda não perceberam como se devem vender. Pelo outro, tenho sempre dificuldades em considerá-lo realizador de cinema pela extrema teatralidade das suas obras. O recente refúgio em clássicos da nossa literatura veio agravar essa faceta. Devo dizer que não gostei da sua visão d’ “Os Maias” e esperava algo semelhante para esta obra de Saramago, mas, mais uma vez, o livro era tão importante para mim que tive de arriscar e ver o filme. E fiquei agradavelmente surpreendido.
Comecemos por falar sobre Ricardo Reis. Um poeta horaciano (que tem como tema a brevidade da vida e a importância de se disfrutar de cada momento) que por acaso no regresso a Lisboa encontra no hotel uma Lídia, um dos nomes predilectos para os seus escritos românticos. Nesse mesmo hotel cruza-se com Marcenda, um nome mais invulgar para poemas, mas que também o arrebata. O solitário médico pode estar a precisar de mais companhia do que gosta de admitir. Enquanto isso, a PIDE investiga o médico que regressou do Brasil num momento tão oportuno. Na verdade o que o trouxe de regresso à pátria, foi a morte de Pessoa. Dizer que Reis e Pessoa eram amigos próximos não é suficiente. Eles eram mais do que irmãos. Eram facetas complementares do maior agregado de poetas da humanidade que escreveu sob dezenas de heterónimos e em diferentes idiomas. Por um lado eram todos diferentes, mas no seu âmago partilhavam uma alma.
E para criar um diálogo entre eles, quem melhor que Saramago? Ainda que na sua vida pessoal fosse comunista, na sua obra é um humanista, esplorando a humanidade e as pessoas antes de tudo o resto. Através de um estudo do monarquismo, do Estado Novo e da literatura pessoana, criou uma obra intemporal, com a requintada ironia de pegar no esoterismo de Fernando e na solidão de Ricardo para fazer o vivo falar com o morto.
O brasileiro adoptivo Chico Díaz foi escolhido para dar vida à personagem principal. O seu rosto familiar de tantas obras foi uma escolha arriscada, mas convence depressa. Como Lídia, temos uma enorme Catarina Wallenstein, uma escolha perfeita. E claro, para a suplantar, apenas Victoria Guerra. Botelho filma a preto e branco com uma fotografia cuidada, levando-nos de volta para os anos 30 e 40. E a terceira cena com Marcenda... faz lembrar quando Ilsa entra no Rick’s Café e nos esquecemos de respirar. Devo dizer que Guerra me parecia demasiado velha para o papel, mas honestamente, quem mais teria esse efeito? Uma nota ainda para Rui Morisson que estava perfeito no seu pequeno papel. Luis Lima Barreto não encaixava no Pessoa que imaginei, mas tem uma calma e um porte que se adequam a um indivíduo que detém o derradeiro conhecimento e a maior experiência que a vida nos dá. Em suma, foi um casting surpreendente, mas que funciona. Tal como o filme.
Mais uma vez o exagero teatral do realizador é algo que se estranha, mas neste caso até se entranha. Porque nos transporta visualmente para a juventude do Cinema, quando a sétima arte ia beber ao Teatro e se apoiava em boas histórias. grandes interpretações e uma esmerada fotografia.”O Ano da Morte de Ricardo Reis” tem tudo isso. Uma história relevante e sempre actual. Actores que após o primeiro visionamento se tornam a única opção para tais personagens. Um requinte visual não homogéneo, mas nas cenas certas para se tornar memorável.
Seja o inimitável Pessoa pela sua criação de heterónimos, seja o enorme talento literário de Saramago para criar as bases de um argumento que nunca poderia dar um mau filme, ou sejam os contactos e experiência de Botelho para gerir uma produção muito mais ambiciosa do que esperariamos. graças a uma invulgar combinação de fatores estamos perante um filme que funciona. Tem quase tudo o que é relevante do livro (recomendo a leitura antes para apreciar pequenas subtilezas na mente de Reis que não passaram para os diálogos), faz um bom resumo da enquadramento histórico para nos lembrar que estamos perigosamente perto de um retrocesso e ainda que não seja um grande filme no seu todo, a soma das partes justifica o visionamento.
Título Original: "O Ano da Morte de Ricardo Reis" (Portugal, 2020) Realização: João Botelho Argumento: João Botelho (baseado no livro de José Saramago) Intérpretes: Chico Díaz, Luís Lima Barreto. Catarina Wallenstein, Victoria Guerra, Hugo Mestre Amaro, João Barbosa, Rui Morisson Música: Daniel Bernardes Fotografia: João Ribeiro Género: Drama Duração: 129 min. Sítio Oficial: https://www.ardefilmes.org/YDRR/ |
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