19 de outubro de 2014

"Magic in the Moonlight" por Nuno Reis


É verdade que o melhor de Allen é quando filma a sua Nova Iorque, no entanto quando vai para França nunca é tempo perdido. Esta viagem um pouco mais a sul que a habitual Paris tinha algum risco. Como fugia aos convencionais filmes turísticos que nos tem dado na última década e os nomes de cidade pomposas como Barcelona e Roma estavam ausentes do título, os receios eram infundados.


"Magic in the Moonlight" é uma nova busca de Allen por um sucessor. Se antes foi Blanchett em "Blue Jasmine" a fazer de maníaco-depressiva no feminino, agora é Colin Firth a fazer de génio sobranceiro que enfrenta uma opositora feminina astuta (Emma Stone), como recordamos dos saudosos anos em que Allen e Keaton nos faziam exercitar um pouco a mente durante o filme para que a possamos usar durante o resto da vida.

Firth é Stanley, o ilusionista mais famoso do mundo que actua sob pseudónimo. Um amigo e colega nessas lides mágicas, pede-lhe que o ajude a desmarcarar uma suposta vidente americana cujos poderes em exibição na Riviera Francesa permanecem irrefutáveis. Com uma confiança inabalável nas suas capacidades analíticas e a certeza da inexistência de actividades paranormais, é com todo o gosto que aceita esse pretexto para apanhar ar puro e visitar uma tia que vive nas redondezas, a única pessoa com quem tem conversas interessantes.
A jovem vidente causa uma interessante primeira impressão no inglês. À medida que ele fala com ela e a vai ouvindo, começa a duvidar das suas capacidades invencíveis a desmascarar impostores. E pior, começa a acreditar que ela pode ser autêntica. A primeira prova de poderes sobrenaturais e consequentemente de vida no além e tudo o que lhe está associado. Afinal, quem não acreditaria que aqueles olhos vêm muito além dos nossos?


Se nas anteriores viagens à Europa, sabíamos que Allen estava a disfrutar de umas férias pagas enquanto fazia o filme em piloto automático, agora a dúvida instala-se. A Riviera Francesa é um lugar prazenteiro para passar umas semanas, mas estará Allen a ser um impostor ou será um verdadeiro cineasta com um filme para nos mostrar?
No início há muito de falso. Vemos retalhos vindos de muitos outros filmes anteriores como "Scoop" (o ilusionismo como porta de entrada de uma plebeia americano no mundo dos aristocratas britânicos), "Whatever Works" (a jovem irresistível que lentamente vai caindo nas boas graças do homem que reencontra prazer na vida) e outro que será melhor não revelar para não estragar nenhuma surpresa a quem não viu o filme. Lentamente vamos vendo que há muito mais nesta trama. Firth está fenomenal num papel que lhe encaixa como uma luva (quantas vezes já interpretou estes seres convencidos e valores morais superiores que levam uma lição?) e Emma Stone conquistará os poucos que ainda não lhe estivessem rendidos. Se tivesse mais uns cinco minutos de tela e Blanchett não tivesse ganho um Oscar ainda o ano passado graças a Allen, facilmente a estatueta lhe cairia nas mãos. Assim, talvez tenha uma nomeação.


No seu todo é um filme que fica naquele território dominado por poucos mestres onde Woody se destaca. Nem comédia, nem drama, nem romance, mas um pouco de cada. Nem demasiado no mundo real, nem no fantástico, mantendo-nos no limbo da dúvida entre ambos. Não é um novo "Midnight in Paris". Não vai nem pretende agradar a todos os públicos. Como filme isolado ou introdução a Allen não é de todo recomendável, a não ser que sejam admiradores dos protagonistas. Mas quem está acostumado a ver Allen no seu melhor e pior e o conhece desde os primeiros anos, terá muito com que se entreter a desconstruir "Magic in the Moonlight" nessas várias peças do que já fez antes e ver que, mesmo quando se repete, tem sempre algo de novo para mostrar.

Magic in the MoonlightTítulo Original: "Magic in the Moonlight" (EUA, 2014)
Realização: Woody Allen
Argumento: Woody Allen
Intérpretes: Colin Firth, Emma Stone, Eileen Atkins, Marcia Gay Harden, Jacki Weaver, Simon McBurney
Música:
Fotografia: Darius Khondji
Género: Comédia, Romance
Duração: 97 min.
Sítio Oficial: http://www.sonyclassics.com/magicinthemoonlight/

Entrevista sobre "Delicious"


Foto retirada da página do evento

“Delicious” é um filme britânico de 2013 que passou pelo Porto em Setembro num evento único organizado por Susana Grilo. O filme foi exibido na presença da realizadora/produtora Tammy Riley-Smith, do compositor/produtor Michael Price (que a seguir deu um concerto com Peter Gregson), e do protagonista Nico Rogner que faz de Jacques.
Após o filme houve um quarto de hora para uma entrevista constantemente interrompida por risos onde se falou de coisas tão díspares como ananases de arremesso e facas afiadas que são apenas itens de amor,


Antestreia: Quando decidiu fazer o filme, imaginava que a comida seria o tema do momento? Temos uns cinco filmes recentes sobre comida ou chefs.
Tammy Riley-Smith: Não Absolutamente. Copiaram-nos todos. É inacreditável. O que foi estranho é que lembro-me de ter uma reunião com um distribuidor há alguns anos e ele me dizer “Não, não, não. Filmes de comida, não e não. Hollywood não faz filmes de comida.” De repente, todos estão a fazer filmes de comida. Porquê? Não sei. Estamos todos muito interessados. É muito romântico, muito sexy. Têm alguma ideia do porquê?
Michael Price: Foi uma resposta muito boa.
A: Penso que o que todos têm em comum é o amor, porque a comida liga as pessoas.
TRS: E é interessante que o nosso filme foi muito bem recebido no Pacífico Sul, na Ásia, onde a comida é muito importante. Liga as pessoas e a família. A comida une, é uma linguagem única.

A: Michael, no Q&A mencionou que se sentia como o pai e o filho [ao ser produtor e trabalhador no filme]. Nesta etapa da sua carreira – com um Emmy e a trabalhar em “Sherlock” – sente que ainda precisa de estar no controlo do que faz para o fazer como quer?
MP: Penso que tem mais a ver com como nos envolvemos no projecto. Que forma a colaboração toma. Há alguns realizadores com quem trabalhei, com os quais tenho uma maravilhosa e longa relação de confiança. Não sinto de todo necessidade de estar no controlo. Sinto a necessidade de estar numa relação boa e estimulante, onde trabalhamos juntos e o resultado é melhor do que qualquer um pensaria. Por exemplo, temos “Sherlock” e é uma equipa mesmo, mesmo carinhosa. Apoiamo-nos todos mutuamente. Por isso, mesmo não estando à frente de Sherlock, desfruto activamente dessa relação. Mas também penso que se tens outras oportunidades na indústria, então, de vez em quando, é tentador fazer algo dessas oportunidades. Por isso pedimos de volta alguns favores que não tínhamos pedido antes. Muitas das pessoas que trabalharam em Delicious” são pessoas com quem a Tammy trabalhou antes, eu trabalhei antes. Torcemos-lhes os braços com ofertas de salário muito baixo, mas com muita diversão para que viessem fazer o nosso filme. Não penso que o controlo seja algo que eu procure, mas sim bons relacionamentos.

A: Nico, é um bom cozinheiro? Não consigo imaginar um alemão que saiba cozinhar.
Nico Rogner: Na verdade sou um bom cozinheiro.
MP: Praticaste não foi?
NR: Pratiquei num restaurante Michelin. Estava na cozinha e as pessoas não sabiam que estava a treinar para um filme. Pensavam que estava a trabalhar com eles. Lá há mesmo uma hierarquia e é muito importante. Tive alguns problemas com eles, acho que estavam com medo. Viram um novo tipo e pensaram que queria o lugar deles. E enquanto estudava na escola dramática trabalhava nos mais fabulosos restaurantes de Roma. Trabalhava para pagar a renda e ter dinheiro.
TRS: E foste convidado por um dos teus melhores amigos para fazer a comida do casamento. Ele mostrou-me fotos da comida. Devias ter feito a comida do nosso filme. Era fantástica.
NR: Adoro. Acho que é umas das coisas mais maravilhosas do mundo. Comida.
TRS: Ele nunca me convidou para jantar. Nem uma vez. Nunca.
A: E a personagem alemã, o Adolf. Tem esse nome porque é alemão, porque é maléfico ou já estava no guião?
TRS: É uma alcunha. O nome dele não é Adolf, essa é a alcunha que lhe deram por ser tão mau.
NR: Tem razão sobre a comida na Alemanha. Em algumas áreas. Tal como Londres mudou nos últimos dez anos, Berlim e outras cidades assim grandes têm muita mais influência dos arredores - Itália, França, Escandinávia – e hoje em dia pode encontrar comida fantástica. [pausa] Tinha de o dizer.
A: Não se preocupe. Londres também é só fish and chips.
NR: Não é! Adoro a comida de Londres. Estive em Canterbury quando tinha doze anos – os meus pais mandaram-me para Inglaterra para aprender inglês – por isso estava com uma família, ia à escola e assim. A comida não era como quando vou ao restaurante com vocês. Agora adoro-a, mas aquilo foi há muito tempo. A comida era má.

A: Tammy, há muito vómito no filme, mas não o vemos. Talvez só uma vez. Stella fá-lo fora das câmaras. Isso foi para manter o filme “apetitoso”?
TRS: Não, não queria o filme feito de qualquer jeito. Penso que quando estávamos a ensaiar falamos todos sobre quão negro iriamos. E essas discussões foram muito importantes. Já estive num lugar negro, mas penso que o guião foi ainda mais negro. Fui encorajada a recuar um bocado. Esse equilíbrio entre luz e trevas - quanto vómito vamos ter – era muito importante ir até esse lugar, mas o que mostramos, essas decisões eram ainda mais importantes. Queria mostrar especialmente a escova de dentes., queria mesmo mostrar isso. Não para chocar o público, isto é real. É uma história verídica. Queria fazer um romance. Para mim nas comédias românticas vemos duas pessoas e o que as separa são os obstáculos no guião. Isso não é a vida real. Na vida real são eles. O que separa as pessoas são as personalidades. Os malditos demónios interiores mantêm-nos afastados. Tinha de ir ali.
A: Falou da cena da escova de dentes. Jacques também usa muito a escova. Foi de propósito para fazer um contraste?
TRS: Sim. Era muito importante. A comida era sempre a arma. Temos a baguette que é usada como pistola, temos…
MP: O ananás.
TRS: O ananás! Temos várias coisas das quais não me apercebi na altura, mas sim, são importantes esses motifs. A saúde e o abuso de comida.
NR: Se me permitem, no processo, como chegamos ao vómito, isso é mostrado. Tudo o que acontece até ela ir à casa de banho para vomitar. Não percebo o propósito de mostrar mais.
A: O filme é muito limpo.
MP: Penso que é mais sobre a vertente emocional. O que gostei particularmente no modo como a Tammy filmou e enquadrou essas duas cenas, foi aquele momento em que vemos o reflexo da Stella no espelho e na verdade o que vemos é algo muito físico e chocante de ver. Estamos conscientes das emoções que a conduzem e do que vai acontecer. Não acho que nos possamos distrair por ver demasiado. Simplesmente penso que nos devemos concentrar no que é realmente importante.
TRS: Sim. É mesmo isso. Alguém diferente usaria o vómito, sujaria tudo, só para chocar a audiência. Não para comover a audiência. Nós preferimos comover as pessoas. Não há nada de limpo neste filme. Só não é de horror, de género. É sobre o que se está a passar com a personagem.

A: Há uma canção francesa no filme. Foi uma homenagem à personagem francesa [Jacques], ou já estava pensada ainda antes de a personagem ter essa nacionalidade?
MP: A banda sonora nos filmes normalmente tem duas partes. O score que eu escrevi, e as canções que nós escolhemos. Incluindo um par de canções do Cícero Buck, e as músicas que escolhemos na edição, canções independentes de artistas emergentes…
TRS: da minha irmã.
MP: Da irmã da Tammy. Mas o que era importante era a estética da música da comédia romântica. Tanto a Tammy como eu trabalhamos independentemente em filmes da Working Title – responsável pelo “Love Actually”, “Bridget Jones Diary” e outros assim – eu trabalhei em vários deles. E há algo especial quando se consegue trazer a energia de uma canção para o teu filme e contar a história desse momento só pela canção. Tentamos várias coisas na edição. Tentamos coisas mais agressivas, tentamos coisas mais próximas do score, mas o que descobrimos foi novamente o balanço de luz e trevas. Há alegria e celebração, mas também vamos muito rapidamente para o canto oposto. Pegamos nesses momentos de festa, os momentos de riso e os momentos de alegria, para que sinta essa necessidade. Porque também os momentos comoventes eram sinceros. Não trivializa, cria um balanço.

A: Nico, também teve de lidar com a mudança de nacionalidade. Teria preferido em interpretar um italiano devido à sua ligação com a cozinha italiana?
NR: De todo. Passei metade da minha vida em França. Dum ponto de vista exclusivamente gastronómico, pessoalmente, sou mais italiano que francês. Mas só porque considero a italiana a melhor comida do mundo. Mas por outro lado temos a ligação Paris-Londres que é apenas um túnel. É algo que vivenciei no filme. Chega-se lá em duas horas! São duas capitais numa viagem de comboio de duas horas. Por isso para mim faz sentido [Jacques ser francês]. Foi ideia da Tammy. Ele em tempos foi italiano, depois escocês, depois…
TRS: Eu achava que o Nico era francês.
NR: Para mim fazia sentido que ele fosse francês. Eu viva em Paris nessa altura.
TRS: Fiquei em choque quando descobri que na verdade eras alemão.
(risos)
A: agora devia dizer “nós britânicos nunca esquecemos”. [citação do filme que Stella diz a Nico a propósito de não gostar dos franceses devido a um acontecimento ancestral]
TRS: Nós nunca esquecemos. [Para mim] Provavelmente também tivemos alguma batalha contra os portugueses a algum momento, nunca esqueceremos.
A: Não, nunca. Somos aliados há quase mil anos. Nem uma guerra.

A: Voltando ao tema anterior, há uma arma no filme. A faca de cozinha.
TRS: Ele é bom. Pode fazer uma tese sobre o meu filme?
A: Certamente. É como se fosse uma pista sobre o passado de Jacques...
TRS: Mas não é uma arma. Essa é a parte interessante. Nunca é uma arma. É uma prova de amor. Algo que era da mãe dele.
A: Teve de lidar com a dualidade.
NR: É o utensílio mais importante que ele tem. É aquilo com que ele vive. Quando descobre o amor pela comida, o que consegue fazer com ela … Algo que nunca vemos no filme: o primeiro objecto que arranjei quando estava a pesquisar para a personagem, de onde ele veio, arranjei uma faca, uma faca de cozinha, que para mim foi uma faca de cozinha que trouxe de casa da minha mãe. Nunca a usei, nunca a vêm, mas tinha-a sempre comigo, no meu saco ou assim. Não é uma arma é um utensílio que faz parte da identidade dele, que o ajuda a seguir em frente. Vê-se que quando é assaltado não sabe usá-la como arma.
A: É toda a identidade dele porque é simultaneamente uma faca como a que ele roubou e o fez ser preso, é a única ligação à falecida mãe e é usada par cozinhar, a vida dele.
TRS: é mesmo bom.
NR: Qual era a questão?
A: Geriu a personagem com uma faca também metaforicamente.
NR: A determinado momento uma coisa muito importante para a personagem era o boxe. Tive aulas de boxe e tudo mas acabamos por não o usar. Mas permaneceu como algo da personagem que esteve sempre comigo. Para o espectador não faz diferença, mas ajudou-me a estar ligado a algo. Muito do trabalho que faço fora das câmaras não se vê. A faca é um utensílio, pode dizê-lo assim. Está a fazer uma análise muito boa.
TRS: Posso dizer que são as melhores respostas de sempre. Não tinha pensado em metade destas coisas. É incrível. É muito satisfatório ouvir essa interpretação.
A: Obrigado. Penso que o momento chave da faca é quando ele está a preparar comida para a Stella e tem de a ensinar a usá-la gentilmente, para não cortar os dedos. E ela poderia tê-la usado como uma arma, para se ver livre dele.
TRS: Penso que o público espera isso.
A: Esperamos algo. Podia ser muito cru e bruto, mas será provavelmente o momento mais ternurento do filme. Obrigado pelo vosso tempo.
Todos: Obrigado.

18 de outubro de 2014

A televisão do futuro chegou

É constante ouvirmos queixas de vendedores sobre quebras nas vendas. Seja a ocupação dos hotéis no Algarve, a venda de música ou de filmes, está sempre tudo mal. O responsável vai mudando. Tanto pode ser o clima, como a economia em geral ou os impostos em particular, e no fim, a culpa é sempre dos clientes que deixaram de comprar. Excepto para os vendedores de carros que são dos poucos resignados e nos poupam a discursos quando o negócio está fraco. Obrigado.

Quando o assunto é a lei da oferta e da procura, temos de analisar essas partes em separado. A oferta aumentou porque todos querem o seu quinhão e mais pessoas e empresas lançam cada vez mais produtos. A procura diminuiu porque o poder de compra foi reduzido, porque faltam novidades e porque há alternativas gratuitas.

Se pensarmos no caso do cinema, enquanto antigamente as salas tinham um único filme e esse ficava em exibição por semanas ou meses e era visto em salas cheias de curiosos e repetentes - até de famílias - hoje em dia um cinema com menos de oito salas precisa de oferecer algo de único para evitar ter os dias contados. Cada semana o número de estreias é semelhante ao número de dias e os títulos estão em confronto constante por mais um bilhete vendido, bilhete esse que pode significar mais uma semana de exibição. Esse fabrico de produtos para consumo, autêntico junk food visual, perdeu o direito de se chamar cultura. Agora é mero entretenimento. Antes também havia ambas as categorias e dispensávamos etiquetas, só que entretanto foi preciso marcar uma linha clara para separar o trigo do joio. O que é feito para ligar o cérebro, do que é feito para o desligar.

Passando para o prisma da procura, com a deslocalização dos cinemas para centros comerciais na periferia, perdeu-se o hábito de passar pelo cinema. Agora a ida ao cinema obriga a voltar a sair de casa, a gastar gasolina (que excepcionalmente está a descer), a decidir entre filmes pouco apelativos enquanto nos impingem baldes de pipocas e refrigerantes ao preço do bilhete, para depois sofrer um quarto de hora de publicidade e trailers tão desinteressantes como o filme que os seguirá. É bem melhor ficar em casa no quentinho, ligar a televisão e escolher entre os nossos quatro canais.

Só que os tempos mudaram, e com eles mudaram também as vontades. Quatro canais eram insuficientes pois eram demasiado semelhantes, seguindo exactamente o mesmo horário que os "concorrentes" para os concursos, as novelas, os filmes, as notícias, os programas infantis, e demais recheio. Por isso começaram a surgir diversas alternativas pelo cabo. Canais com um único tipo de conteúdo para que o tele-espectador possa a qualquer hora ver notícias, filmes, séries, desporto, desenhos animados, sexo, reality shows... Basta escolher o canal.
Muitos canais exigiram um pagamento pelo serviço prestado, e grande parte dos bons canais encaixam nessa categoria. Esses canais de excelência (e outros sem nada de excelente) deram origem ao termo premium television. Claro que um canal só pode ter o descaramento de pedir dinheiro se oferecer algo de inédito ou, melhor ainda, exclusivo. Por isso canais como AMC, HBO e Showtime se especializaram na produção própria. Esqueçam os concursos e talk shows, estamos a falar de filmes e séries.

Pensando nos produtos que se viam nos EUA - e nesta lista faltarão muitos títulos, referimos apenas os mais icónicos - na década de 1980, as grandes referências eram a NBC, no início (1982) com "Cheers" e "Family Ties", para em 1989 nos trazer "Quantum Leap" e "Seinfeld". Nesse ano a HBO despontava com "Tales From the Crypt" e a FOX descobria a pólvora com que conquistava o seu lugar na história da televisão: "The Simpsons".
Nos início dos anos 90 a única novidade entre os canais foi a ABC com "Twin Peaks" (1990). A FOX apresentou-nos a impressionante "The X-Files" (1993), enquanto a NBC arrasava em quantidade pois "Cheers" deu origem a "Frasier" (1993), e em 1994 deu o golpe fatal com dois marcos simultâneos da televisão: "ER" e "Friends".

Pois se Fox e HBO (grupo Time Warner) derivam de grandes estúdios de cinema e teriam maior facilidade em gerar conteúdos, enquanto NBC e CBS são grupos puramente de rádio e televisão, é importante frisar que em 1938 ambas as estações seguiram a indústria cinematográfica abrindo estúdios em Hollywood para captação de talentos. A ABC, o último dos três grandes, chegou um pouco mais tarde. Só começou a interacção com o mundo do cinema nos anos 50, quando a alguns filmes de MGM ,Warner e Fox juntou dois programas semanais da Disney, contrapartidas pelo apoio a um inovador parque temático que Walt estava a construir em Anaheim. Essa parceria (que deu origem a uma das inúmeras aquisições Disney em 1996) tem vindo a dar frutos em produtos mais recentes como "Once Upon a Time" (que revisita personagens popularizadas pelas animações Disney) e "Agents of SHIELD" (veículo de propaganda contínua para os filmes Disney/Marvel).

Porque continuávamos tão dependentes da NBC para boa televisão? Será que trinta anos depois de "Star Trek", os seus difusores eram ainda os únicos capazes de se imporem no mercado? E o que fazia a CBS de "The Twilight Zone"?

Foi aí que tudo mudou. Subitamente, dezenas de séries de qualidade começaram a ser produzidas. E com a duplicação do número de canais em Portugal, começamos a ter algumas delas por cá.

Abaixo podem consultar uma tabela com algumas das séries mais marcantes dos últimos vinte anos organizadas por canal e ano de estreia. A sua longevidade é indiferente pois o foco deste trabalho é descobrir os canais que mais apostam em produtos inovadores. Se eles se aguentam, é outra conversa.
Foram excluídas as que se baseavam em filmes de culto (Stargate, Hannibal, Bates Motel...) para desincentivar esse facilitismo, tal como as inspiradas nos comics mais populares. Ficaram aquelas que se safaram por mérito próprio ou quase. Sim, há muitas inspiradas em livros. Se também essas saíssem, o que sobraria?
Como é fácil de perceber pela leitura da tabela, os tempos mudaram. "Twin Peaks" é um excelente exemplo pois em 2016 regressará. Só que será na ShowTime.
A CBS vai perdendo fulgor. HBO e ShowTime enfrentam ABC e FOX para serem o próximo grande. Nenhum deles preso a géneros ou a públicos específicos. Todos em busca da the next big thing.

Essa luta desviou talentos do cinema para a televisão como nunca antes. Acabou-se a teoria que a televisão era para começar ou acabar carreiras. O pequeno ecrã depressa se tornou num ganha-pão muito importante na indústria do entretenimento. Reputações nasciam e morriam com base no que as estrelas faziam semanalmente. O cinema claro que se começou a sentir ameaçado. Com televisão de qualidade e ecrãs do tamanho de uma tela, cada vez menos pessoas abandonam o conforto para pagar um filme que provavelmente detestarão. No cinema, um filme mau é dinheiro perdido. Na televisão podem deixar de ver sem perder dinheiro. Mesmo que paguem mensalidade, o preço do bilhete está diluído por 24 horas x 30 dias. Podem ver algo melhor a seguir para compensar e o mau programa desvanece na factura.

Num pequeno aparte, do ponto de vista técnico, obviamente que a indústria da electrónica prefere o grande consumo por ter melhores margens. Vender mil televisões é melhor que vender um projector. Por isso, enquanto a televisão melhorava o equipamento audiovisual a velocidades galopantes (tamanho do ecrã, resolução, qualidade do som) o cinema deixou-se estar. Essas mesmas televisões ajudariam às vendas de DVD, BluRay e outros formatos que entretanto arranjassem para revender os filmes. Os videoclubes fechavam e as produtoras acreditavam que o cinema em casa era o futuro.

Quando era demasiado tarde, o cinema começou por dar mais uma dimensão, trocar película por digital, agora aumenta os FPS e sabe-se lá que mais virá. Tudo pontos onde a TV responde sem demora como quando do som e da cor. A electrónica agradece a oportunidade de vender novas televisões. Como é possível que um aparelho antigamente durasse vinte e trinta anos? Um lar tem de mudar de televisão a cada dois anos para se manter actualizado com a nova tecnologia! Também na televisão se segue a Lei de Moore?
Ao cinema faltou apostar no único ponto diferenciador: a televisão é para ver com a família, o cinema vê-se com o bairro. A diferença está no convívio, no falar sobre o filme, e especialmente em conhecer os intervenientes. Aquela experiência única que alguns músicos propiciam nos concertos ao vivo para compensar a diminuição de rendimentos nas vendas de álbuns, no cinema acontece? Só por vezes, nos festivais.
Quanto tempo falta para o cinema perceber que assim já perdeu? Se antes davam anúncios de filmes na televisão, agora mais frequentemente vemos anúncios de séries no cinema. Os papéis foram invertidos.

Fim da história? Isso queriam vocês. Ainda a procissão vai no adro.

Chegou a vez da televisão se lamentar. Se antes eram os Tivos e as boxes que permitiam escapar aos intervalos, agora opunham-se ao mesmo moinho que o cinema tanto gritava ser um gigante, os downloads. Nem era pelo preço pois também acontecia nos de sinal aberto. As pessoas recusavam-se a esperar para ver um episódio. Recusavam-se a esperar que voltasse a dar ou a ter o trabalho de programar a box para o ver. Bastava ligar o computador (onde já passam a maior parte do tempo) e tinham tudo à disposição mais depressa do que se se levantassem para ir até à televisão. Se calhar o computador já está ligado à televisão para ver em grande ecrã e com um bom sistema de som. Aquilo que a televisão tirou ao cinema, também deu proveitos ao computador. E quem fornece o serviço de televisão também vende o de internet pelo que ganha em qualquer dos casos.
Na ânsia de dar mais e melhor, esqueceram-se da nossa amiga lá de cima, a lei da oferta e da procura. Porque também há demasiados canais e as boas ideias começam a rarear. A televisão espremerá a última gota em breve sem que perceba o que se está a passar. Era precisa uma revolução e a HBO anunciou dia 15 (a Showtime provavelmente irá atrás) que passarão para o online em 2015. Dia 16 a CBs faz o mesmo. Ou seja, os espectadores que quiserem, poderão deixar de pagar os 50 dólares mensais da televisão por canais que ignoram, e adoptarem a televisão à la carte para verem o seu adorado "Game of Thrones" pagando ao episódio.
Isso deixou muita gente em pânico. Por um lado os operadores de cabo ao imaginarem uma diminuição nos cem milhões de assinantes. Por outro os vendedores de séries em formatos físicos. Este modelo faz com a margem dos alugueres e compras de conteúdos televisivos fique por inteiro no canal.
Acusam o canal de canibalização. É assim tão mau só vender às pessoas o que elas querem ver e quando querem?

Foi assim que há vários anos um novo modelo de negócio surgiu. A Netflix inicialmente era uma empresa de aluguer de filmes por correio. Depois mudou-se para o digital para chegar mais depressa às pessoas. Conteúdo instantâneo e barato.
Encerrou séries começadas por outros canais ("Arrested Development", "The Killing", "Star Wars: The Clone Wars") e agora lançou-se na produção própria com séries aclamadas como "Hemlock Grove", "House of Cards" e "Orange is the New Black". Nos seus projectos futuros para o público mais jovem estão séries da Dreamworks como "Puss in Boots" e "Dragons" (baseados nos filmes que estão a pensar), assim como uma nova versão das pérolas da nossa infância, os "Ursinhos Carinhosos" e a "Carrinha Mágica". Para os mais adultos, quatro séries e uma mini-série Marvel - "Daredevil", "Jessica Jones", "Luke Cage", "Iron Fist" e "Defenders" - e os próximos quatro filmes de Adam Sandler são apenas o início.

Recuperar séries parece ser o caminho pois também o Yahoo Screen (herdeiro do odiado Yahoo Video que deitou fora quatro anos de vídeos dos seus utilizadores para assumir esta nova postura) vai dar nova oportunidade a "Community" junto ao seu ainda parso conteúdo original.
A Amazon foi outro gigante que se lançou nessa aventura - muito logicamente visto que distribuem conteúdos digitais de vários tipos - e tem três séries, "Alpha House", "Betas" e "Tumble Leaf", além de pilotos falhados como "Zombieland".
Num lugar mais distante está a Hulu que basicamente revende conteúdos dos outros canais por os seus originais ainda estarem longe de serem apelativos. Com tempo lá chegará.

Ponto um: A Internet pode ser uma aliada. A CBS no Verão admitiu ter lucros 20% superiores com o streaming de séries do que com a televisão. Segundo os últimos números, tanto as subscrições pagas de canais online como as receitas por publicidade em streaming estão a aumentar. As pessoas estão a pagar directa ou indirectamente pelos conteúdos que querem ver, ignorando campanhas publicitárias e opiniões de terceiros. O gosto pessoal é o único critério e há para todos os gostos. Com números destes, ainda têm coragem de acusar a pirataria pela quebra de receitas? Ou será que é só porque se vendem muito mal e o que vendem é muito mau?

Ponto dois: A única forma das empresas de distribuição de conteúdos se aguentarem, parece ser gerando e vendendo os seus próprios conteúdos. Primeiro, porque nesta indústria é melhor reduzir ao máximo as possíveis dependências de outras entidades que a qualquer momento os abandonam. Segundo, porque como as pessoas escolhem o que vão ver, escusam de esgotar recursos limitados (os bons guiões) para ocupar 24 horas de emissão. O resto do tempo dos utilizadores será passado noutras regiões da internet.

Será que respeitar o público, dar opção de escolha e cobrar o que é justo chegam para manter o público? Ou teremos dentro em breve um novo concorrente para desviar os consumidores da televisão à medida? Serão os videojogos? A realidade virtual? Só o tempo dirá. Até lá, estamos bem assim. Só falta Portugal ter as mesmas condições.

5 de outubro de 2014

Todos Somos CineTrofa

O Cinema encontrou uma casa no síto mais improvável.


Algo de muito especial aconteceu nos últimos dias. Uma causa que parecia impossível, deu a impressão de ser fácil graças a todos os envolvidos.
Querer fazer um festival na Trofa era uma ideia louca. Implementá-lo, uma causa perdida. Chegamos ao final da parte cinematográfica do evento, e a única ideia na mente dos envolvidos é começar a preparar a edição seguinte. O CineTrofa veio para ficar.

A preparação do CineTrofa começou tarde. No início de Julho a página Facebook abriu ao público com um logótipo. Consideremos isso o início de tudo. Era oficial que algo iria acontecer e que se estava a trabalhar para isso.

Ao longo dos dias seguintes foram aparecendo os banners com diversas figuras incontornáveis do cinema e a 18 de Julho o festival apresentou-se. Fez uma conferência de imprensa, abriu inscrições, expôs-se à crítica. Como seria de esperar, passou despercebido. Meia dúzia de orgãos de comunicação deram atenção à notícia. Mas isso foi por cá, onde sabem que a Trofa é um pequeno município a norte com um passado associado à mecânica e aos têxteis como tantos outros por estes lados. Lá fora o primeiro dia significou uma centena de submissões. Para eles o passado e tamanho da Trofa não interessavam. Só queriam saber que existia um festival onde o filme encaixava e enviaram-no. Estavam a olhar para o futuro.
Um mês depois, começou. De 23 de Agosto em diante, ao longo de cinco semanas, as freguesias de Covelas, Alvarelhos/Guidões, Coronados, Muro e Bougados receberam o cinema. Gratuito, ao ar livre (quando não chovia) e entregue quase em casa. A Trofa em peso estava a ser obrigada a ver cinema de diferentes géneros.
Com o Moonset foi dado um passo ainda maior. A festa saiu à rua. As pessoas interagiam, trocavam filmes, tiravam selfies com personagens. E como se a Trofa não bastasse, o festival passou pelo Porto com curtas de Luís Diogo e pelas redacções de jornais com a gastronomia local. Para fechar o pré-festival e abrir o apetite, nada como um mergulho na piscina local com cenas de “Jaws” e alguns membros arrancados à dentada e deixados na borda.

Enquanto isso, uma equipa trabalhava nos bastidores para que 1 de Outubro ocorresse um festival onde dia 30 de Setembro à tarde parecia impossível. As janelas da biblioteca foram tapadas com panos pretos, uma grande tenda foi erguida no pátio, e muitas mais pequenas e grandes tarefas foram feitas tendo a pressão temporal como combustível. Digamos que esse dia acabou bastante tarde, mas havia confiança no dia seguinte.

Podia entrar agora em detalhes sobre o que aconteceu em cada um dos dias. Não percamos o meu e o vosso tempo. O que importa transmitir é aquilo que se viu todos os dias, o espírito do festival. A Trofa tem uma grande área, com vários pontos de interesse dispersos. Por isso não se pode dizer que o festival tenha um sítio. Oficialmente será a Casa da Cultura, uma biblioteca com quatro pisos onde passa a maioria das sessões e as pessoas se reúnem. Mas o CineTrofa também é no Auditório da Associação Empresarial do Baixo Ave, a única sala decente de cinema na região. Também é na Estação Rodo-Ferroviária onde a obra de Agostinho Santos e a de Saramago se misturaram. Também é nos restaurantes onde comemos várias vezes o melhor leitão do país e nas confeitarias onde se encontram os melhores jesuítas do mundo (ao contrário do boato desactualizado que os atribui à vizinha Santo Tirso). E também é na escola secundária onde fomos recebidos por um anfiteatro cheio de alunos que entraram a contar com uma hora de tédio e saíram com desejos de ler a obra de autores nacionais.
E onde a Trofa pudesse ser deficitária, a vizinhança deu o apoio necessário com pessoas da Maia, Matosinhos, Porto e Gaia, e alojamento em Santo Tirso. Unidos pelo amor ao cinema e crentes numa causa, fizeram uma espécie de magia que mesmo hoje não sabemos como correu tão bem. As estrelas pareciam alinhadas para que o tempo fosse agradável, as obras ao lado fossem concluídas depressa, e os convidados fossem excelentes pessoas, não só disponíveis como tolerantes às nossas falhas. Este cruzamento de gerações e nacionalidades deu origem a diversas ideias que terão de ser postas em prática já na próxima edição de forma a capitalizar as energias e vontades.

A cerimónia de encerramento terá sido a maior surpresa. O horário não foi cumprido em parte por culpa da enchente de admiradores que foram ver Germano Almeida e Fernanda Matos atrasando as sessões da tarde, e em parte por culpa do leitão que reteve os comensais no restaurante muito para além da hora prevista. No regresso à Casa da Cultura, o protocolo em ritmo acelerado compensou isso e muito mais. As fotos da praxe foram tiradas com rapidez, os lugares estavam atribuídos e com margem para imprevistos, a produção tinha a parte técnica mais que testada. Os discursos não foram demasiado longos, notou-se que a nota dominante era de orgulho por um trabalho bem feito e de confiança na longevidade da iniciativa. A alegria reinava, fosse pelas crianças que brincavam no exterior, ou pelo bar aberto.

Sabemos que cada festival é único, mas, a ter de comparar, o único em Portugal que se assemelha é Avanca. Se sabem o que isso significa, já sabem se é o vosso estilo de festival.
Foi um orgulho fazer parte disto e, venha o próximo!