17 de junho de 2013

Big Brother - o livro e o filme

Sejamos honestos, mesmo quem desdenha o género e diz nunca ter visto, sabe perfeitamente o que é o Big Brother. Fenómeno de culto popular e populista, é a referência com a qual todos os reality shows são comparados. Tendo sido o evento que definiu o género, era também o mais ligeiro. Com o passar dos anos os programas foram cada vez mais ousados (e menos éticos) numa luta desenfreada pela atenção dos espectadores. Hoje em dia a discussão gira principalmente em torno da autenticidade dos concorrentes, esquecendo o mais importante: a privacidade. É verdade que quem se inscreveu - em especial depois da primeira edição - sabia exactamente ao que ia, mas não podia imaginar os danos psicológicos de estar sempre sob escrutínio e sob vigilância. O ser humano é um ser social, mas precisa de privacidade.

Não estou aqui para falar de reality shows. Lamento por vos ter atraído com um título apelativo, mas o verdadeiro tema deste artigo não é uma adaptação ou uma ficção literária do programa televisivo. Estou aqui para relembrar obras-primas incluíndo a do criador do Grande Irmão original, George Orwell.

“1984” é uma obra distópica. É irónico que alguns dos maiores romances que a humanidade alguma vez criou, serem sobre um dos maiores problemas que ela conhece: quem devia liderar querer controlar carneiros. Podem fazê-lo pela via genética (Admirável Mundo Novo), pelo atrofiamento intelectual (Fahrenheit 451) ou pelo simples medo (Minority Report). Mesmo afirmando publicamente que todos são iguais, haverá sempre alguns mais iguais do que outros (novamente Orwell). É isso o totalitarismo.

Vamos comparar essas obras e ver como se podem tornar cidadãos pensantes em fantoches obedientes. A forma mais fácil é se vierem assim de origem (“I was drawn that way” como dizia a Jessica Rabbit). Sendo programados pelo estado desde o estado pré-natal até serem adultos trabalhadores, é como um regresso à escravatura. Nascem para servir. Quem estiver descontente, é drogado até deixar de pensar. Aldous Huxley sabia do que falava.
Se isso não for possível, o melhor é que cresçam sem influèncias nefastas. Queimemos todos os livros e tornemos a televisão no único alimento da mente. Umas máquinas que detectem e eliminem os prevaricadores (perante todos os cidadãos) resolvem o assunto. Ray Bradbury sabia do que falava.
Melhor do que não haver livros, é que todos os livros nos dêem razão. Que tal criar um ministério que tem como única função “retocar” as notícias e literatura de forma a fortalecer a autoridade do governo? E uma língua em que não se pode contrariar o regime? E ter o rosto do líder por todo o lado? E uma guerra permanente para que ninguém se possa preocupar com - ou preparar para - o futuro? George Orwell sabia do que falava.
Mais simples ainda? Que tal prender alguém com base em intenções? Como ainda não se consegue adivinhar, é preciso interceptar todos os emails e telefonemas. Philip K. Dick não sabia, mas esteve bem perto.

Vejamos onde estamos hoje em dia. A televisão é a principal fonte de cultura. Os clássicos, sejam de literatura, música ou cinema, são desprezados. Tornaram normal uma pessoa imiscuir-se na vida dos outros. A opressão dos cidadãos na Turquia atingiu níveis inimagináveis num país que pretende a União Europeia. O ataque à televisão pública na Grécia (e em muitos outros países com diferentes técnicas) é o início do fim da liberdade de informação. Notícias sobre o PRISM revelam que a invasão de privacidade tem uma dimensão muito superior ao que se imaginava.

É triste que o cinema, formato ideal para promover uma ideia ou um livro, nunca tenha tido sucesso a promover este tema. Mas nem tudo está perdido. A literatura continua a criar novos heróis que combatem a opressão. His Dark Materials e Delirium podem ter falhado, mas ainda temos as heroínas de Divergent e Mortal Engines, para referir os exemplos mais mediáticos. E Katniss já provou que é possível. Todas elas combatem sistemas onde a pobreza, as drogas, as castas ou o espectáculo televisivo mantêm o respeito pelo regime. Em comum, serem raparigas jovens e inconformadas. Só dessa forma um livro pode, desde cedo, chegar a ambos os sexos. Só assim se mantém o interesse pela leitura, e a mente atenta ao que se passa à nossa volta.

Leiam, vejam adaptações cinematográficas, participem em clubes de leitura ou de discussão. Por via das dúvidas, decorem um livro. Mas, acima de tudo, pensem sobre o que leram e não permitam que o mesmo aconteça na realidade. 1984 pode ter passado, mas “1984” está a chegar and big brother is watching you.

3 comentários:

Loot disse...

Belo texto Nuno, nunca é demais relembrar estes perigos. E fizeste aqui um excelente apanhado de obras literárias de grande importância a desenvolver o tema. Quanto a no cinema não ter havido tanto sucesso a promover o tema, pelo menos o Fahrenheit 451 do Truffaut acho que conseguiu. Não vi a adaptação do 1984, mas quando se fala da obra é quase sempre do livro.

Já agora, ainda acrescento mais um livro, o "V For Vendetta" de Alan Moore e David Lloyd, outra excelente abordagem ao totalitarismo e que tem, talvez, como maior influência o 1984 de Orwell.

abraço

Nuno disse...

O filme do Truffaut foi relativamente bem recebido (melhor que os outros exemplos), mas ficou ofuscado pelas várias obras melhores do realizador.

Queria referir o V com uma frase como "As poucas liberdades que temos são asseguradas por alguém com uma máscara de Guy Fawkes." Mas não só esse foi um sucesso em cinema (contrariando a ideia de as adaptações serem mal recebidas), como inspirou o mais eficaz movimento anti-totalitário do século XXI tendo por isso um forte elo com a realidade. Digamos que é a excepção que confirma a regra.

O texto foi sugerido há cerca de duas semanas e vinha a ser rascunhado desde então, mas devido à situação na Turquia (e entretanto também no Brasil) tornou-se urgente publicar e não pôde ser melhor trabalhado. No fim-de-semana dou alguns retoques de acordo com a situação social.

Loot disse...

Percebo-te perfeitamente, mas gostei bastante do texto na mesma :)

Quando falei do V estava a pensar na BD, mas tens razão o filme foi um bom exemplo de sucesso e a sua influência é bem notória nos dias de hoje.

Já agora então acrescento uma sugestão musical o álbum "Animals" dos Pinl Floyd. Tem mais a ver com o Animal Farm do que com o 1984, ainda assim é uma critica severa ao capitalismo. É um álbum genial :D

Abraço