A (re)construção do vigilante de Gotham, personagem originalmente criada para a banda desenhada, e que Tim Burton adaptou com maestria em 1989, teve desde essa altura uma série confragedora de altos e baixos. Se este marcou de forma indelével a progressão, não só pelo facto de ser o primeiro, mas essencialmente por ter carregado a saga de uma aura
noir que atraiu diferentes manifestações - se a uns (como é o nosso caso) agradou e de que maneira as opções estéticas, a verdade é que o circo-pipoca de Hollywood exigiu uma viragem do herói para um pop veraneante que contaminou durante uns anos a personagem de Batman. Estamos, claro está, a falar dos inenarráveis "Batman Forever" (1995) e "Batman & Robin" (1997), dois atentados de Joel Schumacher à criação de Bob Kane.
Mas se a intenção era fugir ao negrume de Gotham, a opção por Cristopher Nolan revelou-se errada, na óptica daqueles que queriam ver quando é que Batman e Robin acabariam a partilhar o leito. Nolan surge, e falha na primeira tentativa - porque não consegue unir, como oportunamente explicamos ("
Batman Begins", 2005), os vários momentos da narrativa. Mas tal não significa que fosse errado continuar a aposta - um anti-herói como o é Batman não podia estar à mercê de luzes psicadélicas e vestidos às bolinhas. E se em "Batman Begins" não havia vilão à altura, neste regresso há vilão, como já não viamos em muito tempo.
Facto: estivemos perante uma das maiores e mais virais campanhas de marketing que um filme proporcionou, desde que ambas as ciências se uniram. Facto: o
hype sobre ele foi (e ainda o consegue ser) gigantesco - recordes a cairem como folhas no Outono, declarações de amor dos primeiros a assitirem a uma projecção, comparações ao "The Godfather" e a "
A Clockwork Orange", informação e contra-informação. Não sei até que ponto isto é positivo - poderá a expectativa enfermar o contacto com a peça? Não cumpre aqui atingir soluções ou respostas, mas a verdade é que sou partidário do acesso quase imaculado ao produto final.
E é neste ambiente que voltamos a encontrar o Batman de Nolan e de Christian Bale, com um mórbido atractivo; a morte de Heath Ledger, às mãos do excesso, numa altura em que surgem rumores de oferece uma prestação memorável. Como se não bastasse o frenesi da expectativa, deparamo-nos com a possibilidade de assistir a uma interpretação, avaliando-a por um prisma de simpatia.
Neste novo tomo da saga, Batman enfrenta The Joker (Heath Ledger), um inquietante personagem que semeia o pânico em Gotham City. Do outro lado da barricada esta Harvey Dent (Aaron Eckhart), Procurador-Geral da cidade, e rosto da luta ao crime, com a indispensável ajuda do (ora) tenente Gordon (Gary Oldman). Dent, que tem uma relação amorosa com Rachel Dawes (Maggie Gyllenhaal), antiga companheira de Bruce Wayne, vê-se perante uma terrível onda de crime, e une-se definitivamente a Batman para evitar o pior para a cidade.
"The Dark Knight" / "O Cavaleiro das Trevas" não é, definitivamente, um filme de super-heróis. Revela-se, em toda a sua extensão, num complexo policial, negro e terreno, onde a figura de Batman e de The Joker são profundamente humanizadas, onde não existem super-poderes, unicamente vícios e defeitos comuns. E esse (a par da estrondosa interpretação de Ledger) é o grande trunfo do filme.
De facto, a humanização de todo o ambiente surge como
piece de resistance desta abordagem. Bruce Wayne continua a ser, agora mais do que nunca, um homem profundamente perturbado, um indivíduo que não consegue enfrentar os seus medos e ambivalências, e nesse propósito se esconde por detrás de uma máscara. É alguém que vive numa espiral de dupla personalidade, entre a sapiência e
joi de vivre de um homem abastado, e o negrume de uma vida dupla onde interpreta um papel de vilão-herói, raramente reconhecido pelos seus feitos, altamente atacado pela vida à margem da lei.
Por outro lado, a humanização do vilão, o surgimento de um homem raro, portador do caos na sua essência mais pura. Faz o mal por fazer, pratica crimes porque sim, incita o caos porque pode. É aquele que impulsiona o terror numa sociedade, que coloca todos alerta, que muda os comportamentos sociais. The Joker é a personificação de uma
societas marcada a ferro pelo 11 de Setembro, despudorada na vigilância (não é por acaso que Wayne tem ao seu alcance o controlo do local onde todos se encontram), onde o alerta de consciência é dado (por Lucius Fox - Morgan Freeman), mas recebido com estranheza.
Por fim, a humanização da tragédia ficcional, do fim da convivência livre, às mãos das mais finas alterações comportamentais - a incapacidade de sabermos onde nos posicionamos no dia a dia e de nos apercebermos do alcance dos gestos e das opções.
É, para mim, esse brilhante Joker do filme, que se nos cola à pele - o vilão dos mil tiques, impregnado de insanidade, louco na hora do delito e cínico nas palavras e naquele constante revolver de língua na hora de vomitar todo o desarranjo próprio do fruto de uma família sem estrutura, onde a altura do correctivo parental se estende de orelha a orelha. Ledger, se quisermos ser românticos, morre porque sabe que aquilo a que estava destinado se cumpre - é-o de uma enorme intensidade, onde não se confunde actor com personagem, porque ambos se fundem a toda a extensão - quer num passeio de carro com a cabeça de fora ou travestido de doce enfermeira, carregado de ódio, numa ode de masturbação caótica.
Peca na extensão - Nolan não soube quando parar. Talvez por já ter pago toda a pirotecnia, decidiu gastá-la até ao fim. E esse deslumbramento, que marca o desacerto da economia narrativa, dá ao filme mais do que ele precisava. Mas não será por esta situação que fica manchada a actuação de Ledger, a ascenção de Eckhart, a visceral teluricidade de Wayne. Um dos grandes policiais das últimas décadas.