31 de dezembro de 2007

"Dreamgirls" por Nuno Reis


Nos anos sessenta a cidade de Detroit era famosa pela sua indústria automóvel em queda e por ter uma população maioritariamente negra. É nesse ambiente que vamos encontrar as Dreamettes, aspirantes a artistas musicais. Num concurso local de talentos são descobertas por Curtis Taylor Jr., um vendedor de carros usados/agente de talentos, que as põe a actuar nesa mesma noite para o célebre James Early. A partir daí o caminho é sempre a subir até ao estrelato. É incrível ver como uma carreira pode suplantar os laços de amizade e de sangue. Effie tem a melhor voz, mas por ser mais forte fisicamente é colocada em segundo plano para que Deena, muito mais atraente, possa atrair público. Depressa o temperamento de Effie deita tudo a perder e ela é unanimemente afastada da banda. Enquanto James Early continua a tocar em locais duvidosos e Effie fica desempregada por orgulho, são as Dreams que conquistam o planeta.

Na época dos maiores nomes da música e dos discursos de Martin Luther King, um filme sobre cantoras negras pouca precisa de fazer para ser um símbolo do conflito racial. Na década anterior Ray Charles travou a mesma batalha, na década seguinte Aretha Franklin simplesmente não teve de lutar. Muito inspirado na carreira das Supremes (Dreamettes/Primettes, Dreams/Supremes) não as refere. O esforço de Curtis para colocar as Dreams na ribalta é fascinante. Vemo-lo a criar a editora Rainbow (Motown) para torná-las umas estrelas no mundo negro (tabelas do R&B) e combater no mercado musical dos brancos (tabelas de pop), onde a música negra apenas vingava se interpretada por um branco. Nesta época em que os direitos de autor são ignorados, no início de carreira Curtis critica os artistas brancos que roubam a música dos negros. Numa reviravolta orwelliana, quando a música da Rainbow chega ao patamar das labels de pop, serão os seus artistas a roubar aos negros.
O lado humano é uma constante em filmes sobre músicos. Aqui como em todos do género vemos o ambiente familiar e os problemas com drogas. Por ter-mos as vidas paralelas de James, Effie e Deena é mais completo que outros filmes, centrados numa personagem e limitados pelos factos reais. Os supostos amigos que estão sempre presentes e são os primeiros a abandoná-los, e os verdadeiros amigos que surgem para ajudar quando lhes é pedido.

Além de ter imensas músicas apelativas e que ficam facilmente na cabeça este musical tem um elenco de luxo. Eddie Murphy como James Early tem um início tempestivo e por vezes quando canta faz recordar o seu Donkey. Ao fim de meia hora de filme começa a ter aparições mais temporárias e uma interpretação mais prudente, o que lhe valeu a nomeação para Oscar. Jamie Foxx canta mal em comparação com o que fez em "Ray", mas tem uma actuação sólida. Danny Glover, num papel demasiado secundário, consegue mudar de agente revoltado para velho conformado. Amigo dos seus amigos, acaba por ser das personagens preferidas. Keith Robinson (depois de uma breve carreira como Power Ranger) interpreta o compositor C.C. White. Com um bom desempenho e usando a uma boa voz, cumpriu o seu dever. Nos papeis femininos Anika Noni Rose e Sharon Leal são excelentess vozes, a nível de actuação Rose tem algumas boas cenas de forte componente musical. Beyoncé Knowles como seria de esperar tem uma voz fabulosa e interpreta lindamente a estrela máxima. Nâo se pode chamar a isso interpretação pois Beyoncé é uma diva todos os dias. A grande surpresa é Jennifer Hudson. Esta estreante vinda do American Idol (os nossos Ídolos), mostrou ao mundo a voz com que conquistou a América e como bónus foi capaz de actuar belissimamente. O Oscar premiou a mulher que deu corpo e alma ao filme.




Título Original: "Dreamgirls" (EUA, 2006)
Realização: Bill Condon
Argumento: Bill Condon , inspirado no livro de Tom Eyen
Intérpretes: Beyoncé Knowles, Jamie Foxx, Jennifer Hudson, Eddie Murphy, Danny Glover
Fotografia: Tobias A. Schliessler
Música: Henry Krieger, Tom Eyen, Willie Reale, Siedah Garrett, Scott Cutler, Beyoncé Knowles e Anne Preven
Género: Drama, Musical
Duração: 131 min.
Sítio Oficial: http://www.dreamgirls.dreamworks.com/

"Alpha Dog" por Nuno Reis


Quando um dos maiores realizadores americanos dirige um argumento que escreveu, com estrelas do cinema e da música, livre da pressão dos grandes estúdios, só se podia pedir um grande filme. Falo de Nick Cassavettes e do seu "Alpha Dog", um trabalho muito interessante sobre o mundo da criminalidade juvenil. Jake é um passador que deve algum dinheiro a Johnny Truelove, o traficante local. Como Johnny não se pode mostrar brando perante os seus seguidores, manda raptar o irmão de Jake. O jovem Zack é demasiado inocente para perceber o que se passa e, depois do choque inicial, torna-se o refém ideal. Enquanto Jake corre a cidade contra o tempo à procura de informações sobre o seu paradeiro, Zack, maravilhado pelo que o rodeia, deixa-se levar pelas novas amizades até ao sedutor mundo das festas, drogas e sexo.

Johnny Truelove é interpretado por Emile Hirsch. O tímido rapaz que vimos em "The Girl Next Door" de Luke Greenfield é agora um bandido bem perigoso, com brincadeiras próprias da idade e manias próprias da fortuna. O seu pai, interpretado por Bruce Willis, é o modelo que ele segue. Deixou o seu passado do crime, mas apenas porque para a polícia ainda é um dos suspeitos do costume quando algo se passa. Os capangas seguidores de Johnny são jovens marginais que o veneram e lhe obedecem cegamente. Entre eles o destaque vai para Elvis, um seguidor fanático, e para Frankie, que é o principal responsável pelo rapto e acaba por ser o maior amigo de Zack. Esses papeis são excelentemente interpretados por Shawn Hatosy e Justin Timberlake, apenas comparáveis com o desempenho de Ben Foster que, como Jake, demonstra toda a raiva, medo e coragem que se esperaria de um homem naquela situação. Digo homem porque, apesar do seu comportamento infantil no início do filme, comparando com os demais delinquentes é o único que consegue manter a calma e reconhecer os seus erros. Também muito bem está Anton Yelchin como o raptado.

Filmado com um toque levemente documental recorda-nos constantemente que a história narrada é quase integralmente verídica e que o jovem Truelove, também conhecido por Jesse James Hollywood, foi o mais jovem elemento da lista de mais procurados do FBI. Para finalizar o filme temos uma transformada Sharon Stone a recordar-nos que tudo aconteceu por causa de uns míseros 1200 dólares. Difícil de esquecer.




Título Original: "Alpha Dog" (EUA, 2006)
Realização: Nick Cassavetes
Argumento: Nick Cassavetes
Intérpretes: Emile Hirsch, Justin Timberlake, Ben Foster, Anton Yelchin, Bruce Willis, Sharon Stone
Fotografia: Robert Fraisse
Música: Aaron Zigman
Género: Crime, Drama
Duração: 122 min.
Sítio Oficial: http://www.alphadogmovie.com

Melhores Filmes 2007

Fica aqui a nossa escolha para melhores filmes do ano que hoje finda. Nota para o facto de considerarmos indissociável "Flags of our Fathers" de "Letters From Iwo Jima", e ser fruto das opiniões dos habituais escribas deste vosso blog, o que leva a que os vários apontem para diferentes caminhos. Basta clicar no poster para ler a respectiva crítica.

1.º


2.º


3.º


4.º


5.º


6.º


7.º


8.º


9.º


10º

30 de dezembro de 2007

"Wild Hogs" por Nuno Reis


Pegar em homens de meia idade que procuram nas motas a emoção que falta nas suas vidas não parece mais do que um filme de domingo à tarde. Se esses homens forem interpretados por estrelas de Hollywood o caso muda um pouco de figura. Os "Wild Hogs" são quatro homens que se aproximam dos cinquenta anos. Apesar dos blusões com logótipo e das motas que exibem, são uns simples domingueiros, usam a mota uma vez por semana e só se não chover. Quando um deles perde tudo o que tinha na vida, em vez de reconhecer o fracasso, convence-os a partir rumo ao desconhecido. Largam os telemóveis, pegam nas motas, e partem a atravessar o país, encarnando o espírito "Easy Rider" que lhes faltou na adolescência. Na travessia que os espera irão descobrir a imensidão da América e a força dos laços de amizade que os unem. A confiança será mais precisa do que nunca, quando arriscarem a vida para defender os fracos e oprimidos da vila de Madrid, ameaçados por um perigoso gang de motoqueiros.

Este road movie consegue superar as expectativas de quem procura apenas entretenimento. É o retrato de uma geração falhada disfarçado de conto de fadas. Como a inspiração não era muita, Brad Copeland pega em tudo o que já foi feito em cinema e televisão sobre o tema e redesenha com nomes sonantes. Não é todos os dias que se vê um filme que junte John Travolta, William Macy, Martin Lawrence e Tim Allen. Nenhum deles é conhecido por ter muito cuidado com os papeis que escolhe por isso poderíamos estar perante um acaso fortuito em que todos estariam mal. Felizmente verifica-se o contrário, cada um está simplesmente igual a ele próprio e portanto parece muito natural. Apesar disso as personagens são bem definidas, com a vantagem de se complementarem. Como bónus temos Peter Fonda de volta às duas rodas, a interpretar o veterano das motas Damien Blade.

É divertido e fácil de ver. Foi feito muito ao gosto do público americano, mas mesma na Europa tem tudo para ser um clássico televisivo.




Título Original: "Wild Hogs" (EUA, 2007)
Realização: Walt Becker
Argumento: Brad Copeland
Intérpretes: John Travolta, William H. Macy, Tim Allen, Martin Lawrence, Marisa Tomei, Ray Liotta
Fotografia: Robbie Greenberg
Música: Teddy Castellucci
Género: Acção, Aventura, Comédia
Duração: 100 min.
Sítio Oficial: http://www.wildhogsmovie.com/

Melhores Blogs de Cinema 2007

O Antestreia, como projecto em constante processo de actualização, é um assíduo visitante de inúmeros outros blogs de cinema. Como tal, e até porque esta época é muito propícia para a realização de listas dos melhores do ano, deixamos aqui aqueles que considerarmos ser os cinco Melhores Blogs de Cinema dos vários que nos acompanham na escrita sobre o pela sétima arte. Basta clicar na imagem (ou, no caso do Royale With Cheese, no nome) para comprovar. Bom 2008!


1.º



2.º





3.º





4.º



5.º



"Highlander: The Search for Vengeance" por Nuno Reis


Na década de 80 Christopher Lambert fez furor como Connor MacLeod, o Imortal. Nos anos vindouros a série homónima trouxe-nos Adrian Paul como Duncan MacLeod e tanto um como outro foram fazendo os filmes da saga, um deles juntos. Independentemente do actor e do MacLeod, os Imortais – Highlanders – tornaram-se parte do imaginário de toda uma geração. A carreira de Christopher Lambert ao longo dos anos foi perdendo qualidade e o mesmo se aplica aos filmes dos Imortais. Ao fim de vinte anos o interesse morreu e o destino ideal para filmes destes seria o circuito do vídeo, através de clubes ou directamente para venda. Em Portugal a tendência é contrária e passam em cinema os directos para vídeo americanos. Isso aconteceu ao último Van Damme, estreado há cerca de um mês, e à animação "Highlander: The Search for Vengeance". Conscientes do flop que estavam a lançar ofereciam o bilhete para a animação a quem fosse ver o de imagem real.

Aqui o herói é Colin, um guerreiro adoptado pelos MacLeod que acaba por ser o único sobrevivente do clã. Desejoso de vingança, parte através dos tempos em busca do homem que causou a morte da sua família e da sua amada. O Imortal que ele persegue vai criando diversos impérios através dos tempos. Colin consegue impedir novas tentativas de domínio mundial travando os impérios de Roma, Japão e Alemanha. Mas agora estamos em Nova Iorque e no século XXII, o combate final vai começar.

Esta perspectiva dos Highlanders é diferente do habitual o que não admira vindo de Yoshiaki Kawajiri, dos mais conceituados realizadores de anime. As cenas épicas de batalha são muito boas e a animação, fraca para os padrões das mega-produções americanas, é boa anime. Os rebeldes no mundo futurista e o controlo das populações através de doenças são lugares comuns, fazem parte da história imaginada do futuro e merecem tanta atenção como as outras populações ao longo dos séculos e a forma como eram dominados. “Highlander: The Search for Vengeance” como filme individual é fraco, como parte da saga e em comparação é tão bom que deveria marcar um ponto final.




Título Original: " Highlander: The Search for Vengeance" (EUA, 2007)
Realização: Yoshiaki Kawajiri
Argumento: David Abramowitz baseado na obra de Gregory Widen
Intérpretes (vozes): Alistair Abell, Zachary Samuels, Eid Lakis
Música: Jussi Tegelman, Nathan Wang
Género: Animação, Fantasia , Guerra
Duração: 86 min.
Sítio Oficial: http://www.imagi.com.hk/movie/web/highm.htm

"The Good Night" por Ricardo Clara

Abordar a temática dos sonhos depois de um genial "Science of Sleep" (Michel Gondry, 2006) é uma tarefa bastante complicada, e que Jake Paltrow falha nesta sua incursão como debutante da longa metragem.

Gary (Martin Freeman) é uma antiga pop star vetada à composição de jingles comerciais. Casado com Dora (Gwyneth Paltrow), entra numa crise de meia-idade ao mesmo tempo que o seu amigo Paul (Simon Pegg, "Hot Fuzz" - 2007), que se vê perdido no seu casamento. Quando sonha duas noites consecutivas com a mesma rapariga, Anna (Penelope Cruz), começa a pôr em causa todo o seu enlace, e pensa ter literalmente descoberto a mulher do seus sonhos. Com a ajuda de Mel (Danny De Vito), um professor de lucid dreaming (uma espécie de terapia para controlar os próprios sonhos), tenta passar o máximo de tempo com esta nova mulher.

"The Good Night" / "O Sonho Comanda a Vida" é uma série de boas ideias seladas em compartimentos estanques que nunca se se cruzam durante todo o filme. Paltrow, argumentista e realizador da peça, nunca consegue equilibrar o filme, onde à interessante premissa da história, falta talento e, acima de tudo, experiência para saber como passar para a tela a sua verdadeira essência onírica. O desequilíbrio nota-se essencialmente na passagem da realidade para o sonho, onde a páginas tantas parece que o realizador confundia ambos, nunca encontrando o pêndulo que os distanciava. A uma boa ideia, apesar da recente filmografia do assunto (sonho versus esquecimento - "Eternal Sunshine of the Spotless Mind", 2004; "Science of Sleep", 2006), faltou maestria na concepção artística e peso nas personagens femininas, saltando à vista uma direcção de fotografia competente e uma banda sonora que, de qualidade, pecou por escassa. Apesar do parcial falhanço, arrisco a dizer que Jake Paltrow é um nome a ter em conta para os anos vindouros.

Título Original: "The Good Night" (EUA, 2007)
Realização: Jake Paltrow
Argumento: Jake Paltrow
Intérpretes: Martin Freeman, Penélope Cruz, Gwyneth Paltrow, Simon Pegg e Danny DeVito
Fotografia: Giles Nuttgens
Música: Alec Puro
Género: Ficção Científica / Terror / Drama
Duração: 93 min.
Sítio Oficial: n/d

"The Lookout" por Nuno Reis


Todos sabem que um acidente de carro pode destruir vidas, mas alguns jovens, desejosos de afirmação e inconscientes do perigo, arriscam-se loucamente em peripécias muitas vezes fatais. Há também outros casos, os que arriscam e sobrevivem. Chris Pratt é um desses "sortudos". Numa brincadeira causa ferimentos graves aos ocupantes do seu carro, incluindo uma lesão cerebral a ele próprio. Incapaz de memorizar muitos acontecimentos e com um retrocesso mental que o torna indefeso, acaba a morar com um cego e a trabalhar como auxiliar de limpeza num banco. Desejoso de se afirmar na sociedade e perante os pais, deixa-se influenciar por um grupo de jovens que o pretendem usar para assaltar o banco.

O argumento é bastante simples, tem um assalto que nos proporciona momentos tensos e mostra pontos interessantes da vivência de um indivíduo incapacitado e inconformado. Esse tema não costuma ser agradável mas aqui, apresentado num plano de fundo, alerta para questões pertinentes. Chris apesar de tudo aquilo que é e do que fez acaba por cativar a simpatia do público. É apenas um inadaptado que tenta sobreviver num mundo perigoso. Outra característica bem conseguida é que apesar de a falta de memória ser uma constante não cai no erro de imitar "Memento". Chris segue o método tradicional de anotar em papel e ocasionalmente sem esses apontamentos enfrenta falhas de memória, dando um aspecto mais humano e realista à acção. Alguns momentos da ilusão que é o mundo onde vive são demasiado confusos para o efeito desejado e acabam por demorar mais do que o necessário, perdendo-se a mensagem que pretendia transmitir.

Hewitt e Daniels fazem interpretações acima da média e pouco mais há a dizer. Num filme que pretende mostrar o lado bom das pessoas, boas actuações era o mínimo que se podia esperar. Joseph Gordon Hewitt tão pouco depois de "Brick" volta a representar um delinquente, por fazer sempre os mesmos papeis já tem traquejo. A personagem está bem construída e Jeff Daniels, num papel secundário como o mentor cego, completa uma dupla perfeita. As restantes personagens do filme acabam por ser estereótipos e depressa são esquecidas à excepção de Luvlee (Lovely) Lemmons, não que a interpretação de Fisher seja brilhante, mas tem um nome genial.
Não me espanta que tenha passado despercebido no mercado, mas é recomendado o aluguer.






Título Original: "The Lookout" (EUA, 2007)
Realização: Scott Frank
Argumento: Scott Frank
Intérpretes: Joseph Gordon-Levitt, Jeff Daniels, Isla Fisher, Carla Gugino, Sergio Di Zio
Fotografia: Alar Kivilo
Música: James Newton Howard
Género: Crime, Drama, Thriller
Duração: 99 min.
Sítio Oficial: http://www.thelookout-movie.com/

29 de dezembro de 2007

"Taxidermia" por Nuno Reis

A cinematografia húngara tem vindo a afirmar-se como dos exemplos de maior sucesso de cinema europeu, sobretudo numa vertente de um cinema à margem, que não sendo para grandes públicos é para públicos de gosto mais refinado. Poder-se-ia referir o caso de “Johanna” e “Taxidermia” - vencedores recentes do Fantas - e mais recentemente de “Dolina” e “Opium”, que têm a rara faculdade de provocar reacções contraditórias e de acender polémicas, o que só acontece com filmes de qualidade. Taxidermia tem tudo para ser, com o tempo, um filme de culto tal como “Delicatessen”. É provocador, chocante, irritante às vezes, perverso e perturbador. Esta ideia de um taxidermista– embalsamador – e família tem tudo para ser um dos filmes mais repulsivos, e dessa forma transgressora ficar como um marco na época cinematográfica.

Através de três gerações de uma família, vamos conhecendo indivíduos bastante estranhos. Um homem que dispara fogo pelo pénis, uma criança com rabo de porco que cresce para se tornar um comedor de velocidade, e um taxidermista cujo talento é apenas comparável à sua estranheza. A singularidade vai crescendo de geração para geração até ao clímax que termina o filme. O êxito e conforto que cada um destes indivíduos sente em profissões pouco populares, demonstra o seu problema de mentalidade e falta de objectivos reais. No fundo têm todos o mesmo problema de afirmação e falta de amor-próprio e isso causa uma não desejada auto-mutilação permanente. Uma realização atenta, interpretações desconcertante e um retrato sem pudor de comportamentos repugnantes muito rico em detalhes tornam este filme uma obra de arte assustadora.

As mortes - como tudo no filme - são simultaneamente criativas e nojentas, não incomodando apenas os estômagos melhor preparados. À semelhança dos embalsamados que exibe, esta obra impressiona e revolta, mas também atrai. Quando deixar de chocar é porque há algum problema com o espectador.



Título Original: "Taxidermia" (Áustria, França, Hungria, 2006)
Realização: György Pálfi
Argumento: György Pálfi, Lajos Parti Nagy, Zsófia Ruttkay
Intérpretes: Csaba Czene, Gergely Trócsányi, Piroska Molnár
Fotografia: Gergely Pohárnok
Música: Amon Tobin
Género: Drama
Duração: 91 min.
Sítio Oficial: http://www.taxidermia.hu/

"I Am Legend" por Ricardo Clara

Talvez o mais improvável não blockbuster do ano, o filme comercial que não o é, uma abordagem de autor que não possui essa concepção. Um orçamento estrondoso (a rondar os 90 milhões de euros) assente numa visão centrada numa única personagem maniaco-depressiva.

Robert Neville (Will Smith) é um cientista e militar mas, acima de tudo, é um homem só. Literalmente, não fosse ser o putativo último homem na Terra. Tudo começou na descoberta e teste de uma vacina que curaria o cancro, a qual acabou por ter efeitos degenerativos nas cobaias humanas, as quais começaram a progredir para um estado de raiva, transformando-se numa espécie de zombies vampirescos que não podem estar em contacto com a luz do dia. De entre os que morreram aos que se transformaram, sobra um número muito pequeno de humanos no planeta azul.
Neville vive os dias dividido entre a tentativa de encontrar a solução para a praga, na sua Nova Iorque, e a procura de comida, esperando, claro está, que surja mais algum sobrevivente. Acompanhado de uma cadela, Sam, o último ponto de contacto com a sua família, luta para que não seja morto pelos infectados.

"I Am Legend" / "Eu Sou A Lenda", de Francis Lawrence ("Constantine", 2005), é a terceira adaptação do romance homónimo de Richard Matheson, datado de 1954, depois do original de Ubaldo de 1964, e "The Omega Man" (Boris Sagal, 1971), e resulta num estrondoso acto falhado. Não nos iludamos: toda a abordagem conceptual, vista nos primeiros dois terços do filme apontavam para uma das melhores obras estreadas no ano, e uma a recordar, dentro do género, dos anos recentes. Acontece que, quando se quer fazer cinema pragmático com necessidades de bilheteira (ou usando o aforismo popular de «agradar a Gregos e a Troianos), a linha que separa ambos consegue ser ténue, mas a tentação de resvalar para a vertente errada é enorme. Lawrence seguiu-a.
Mas vamos por partes. O argumento é linear, a história é simples, o que permite várias abordagens e perspectivas dos códigos linguísticos. Aliás, um filme assente numa única personagem vive, quase essencialmente, dessa mesma personagem. O que a rodeia (a Nova Iorque deserta, as criaturas animalescas) não pode tentar-se sobrepor à importância dessa centralidade. E Robert Neville é uma personagem que oscila durante todo o filme - pois ganha e perde profundidade com enorme facilidade. Mas quando a tem, exerce-a de forma brusca - um cientista, ateu (como o é, aliás, o filme), sentado na ténue linha entre a sanidade e a loucura, e que parece procurar uma razão para viver - como disse Will Smith, "pega-se num homem, rouba-se-lhe tudo, e será que ele encontra uma razão para continuar a viver?". É um indivíduo que representa uma falange da sociedade actual, daqueles que assenta na fé religiosa um animus vivendi e que, de repente, se vê amputado dessa base e começa a questionar as suas próprias estruturas pessoais e mentais. Neville consegue ser uma imagem de muitos de nós, actualmente.
Peca (Smith) pela instabilidade, quer da profundidade da personagem, quer pela suas próprias limitações enquanto actor. Diluindo-se essas premissas quando se entra na fase de justificação monetária e se derruba o edifício moral da película e se penetra em mais um mundo de mortos-vivos e vampiros.
Reside aqui o grande falhanço de "I Am Legend": um filme que o era e deixou de acreditar que podia ser.

Título Original: "I Am Legend" (EUA, 2007)
Realização: Francis Lawrence
Argumento: Richard Matheson (romance), Mark Protosevich e Akiva Goldsman
Intérpretes: Will Smith e Alice Braga
Fotografia: Andrew Lesnie
Música: James Newton Howard
Género: Ficção Científica / Terror / Drama
Duração: 101 min.
Sítio Oficial: http://iamlegend.warnerbros.com

"Fantastic Four: Rise of the Silver Surfer" por Nuno Reis

Stan Lee é um mestre na arte de criar seres fantásticos e tanto os coloca na nossa cidade como em mundos para além da imaginação do comum dos mortais. O golpe de génio com que tornou a editora Marvel no negócio mais rentável que alguém poderia imaginar foi o Quarteto Fantástico. Quarenta anos depois desse nascimento o Quarteto passou para cinema e já vai no segundo filme. Infelizmente não tiveram a mesma sorte dos outros heróis. O merchandising é incomparavelmente menor, e tudo no filme é de qualidade inferior. Nesta sequela os super-heróis/celebridades vão enfrentar uma ameaça cósmica. Um alienígena vindo do espaço está a afectar todos os aparelhos electrónicos e a criar enormes crateras um pouco por todo o mundo. O que faz o quarteto entretanto? Reed e Sue organizam o seu casamento pela quinta vez, Ben está extasiado pelo amor de Alicia e Johnny pelo dinheiro que o Quarteto ainda pode conseguir de patrocinadores.

Como no filme anterior as representações são de fugir, os actores estão apenas a passar o tempo, não fazem expressões credíveis e utilizam diálogos miseráveis que não honram em nada o mito criado na BD. Todos os departamentos tentam mostrar mais serviço: nos efeitos especiais trocando os poderes das personagens, no argumento fazendo mais humor e no guarda-roupa voltando a insinuar nudez em Jessica Alba.
Dou os parabéns aos argumentistas pelo ridículo em que caíram. O doutor Richards tem um momento genial em que diz "sou das mentes mais notáveis do século e vou casar com a mulher mais sexy do planeta". Este momento sexista à boa moda de "A Bela e o Mestre", combinado com uma dedicação total da personagem feminina principal ao casamento, apaga totalmente a imagem que Sue criou no primeiro filme como cientista de renome mundial. O drama humano de salvar o mundo sem direito a anonimato, aquilo que mais distingue o Quarteto dos outros heróis, é reduzido a um ridículo "estou cansado, e se nos reformássemos?" Além dessas falhas todos os dados científicos são atirados para longe, ou porque podia confundir as crianças, ou porque não sabem explicar nada do que se passa.

Se continuarem a trazer um inimigo/aliado de cada vez, a série ainda pode durar mais uns anos. Convém é que seja depressa pois, apesar de ser fã da equipa (destes originais e de muitos dos outros), a paciência tem limites. Aproximam-se novos tempos e a Marvel já divulga comics na net. Falta chegar a um outro público: os espectadores televisivos. A média de filmes Marvel por ano está sempre entre três e quatro. Em 2008 vão lançar seis filmes, em 2009 mais oito. Quem vai ver mais catorze filmes de heróis? Em cinema cada espectador vai ver um ou outro herói com que simpatiza, mas no Universo Marvel é muito frequente as histórias cruzarem-se e apenas vendo tudo se pode compreender.
Sugiro à Marvel que escolha depressa os actores para todas as suas personagens-chave, que decida um máximo de meia dúzia de histórias a passar para filme e que invista numa série televisiva de super-heróis onde utilizem apenas o que já foi feito em papel. Da mesma forma que teriam as personagens dos blockbusters actuais - estrelas em séries anteriores de animação - teriam vários outros mais económicos. É óbvio que para eles o dinheiro é problema, para o público seria mais deslumbrante, e com toda a publicidade as vendas dos comics e DVDs também disparariam. Além disso seria uma forma de finalmente se ver alguns grandes heróis que não são suficientemente lucrativos para terem direito a filme.




Título Original: "4: Rise of the Silver Surfer" (Alemanha, EUA, Reino Unido, 2007)
Realização: Tim Story
Argumento: Don Payne, Mark Frost, John Truman, personagens criadas por Stan Lee e Jack Kirby
Intérpretes: Ioan Gruffudd, Jessica Alba, Chris Evans, Michael Chiklis, Julian McMahon, Laurence Fishburne (voz), Beau Garrett
Fotografia: Larry Blanford
Música: John Ottman
Género: Acção, Aventura, Comédia, Fantasia, Ficção-Científica
Duração: 92 min.
Sítio Oficial: http://www.fantasticfourmovie.com/

Melhores Álbuns 2007

Foi, ao contrário do cinema, um ano profícuo no que à musica diz respeito. Com um balanço claramente positivo na cena nacional e no indie pop-rock internacional, o Antestreia divulga as suas escolhas para Álbuns do Ano 2007.


1º OKKERVIL RIVER - "THE STAGE NAMES"


2º PJ HARVEY - "WHITE CHALK"


3º JP SIMÕES - "1970"


4º RADIOHEAD - "IN RAINBOWS"



5º ROBERT WYATT - "COMICOPERA"



Menções Honrosas:


1) Arcade Fire - "Neon Bible"

2) Peter Von Pohel - "Going To Where The Tea Trees Are"

3) John Vanderslice - "Emmerald City"

4) The Good, The Bad & The Queen - "The Good, The Bad & The Queen"

5) Fiery Furnaces - "Widow City"

Época dos Top's e das Estrelas

Estamos, claro está, na época dos Top's. E o Antestreia não foge à regra. Assim, hoje vamos publicar o Top dos Melhores Álbums 2007, com as respectivas menções honrosas. Amanhã será a vez do Top dos Melhores Blogs Portugueses de Cinema, terminando estas listas com os Melhores Filmes de 2007, na escolha do Antestreia.

Por outro lado, anunciamos que a partir de 1 de Janeiro de 2008 só se poderá fumar enquanto se lê o Antestreia se o local onde o leitor estiver o permitir, e que passaremos a cotar os filmes com as tradicionais estrelas, indo de «bola preta» a «cinco estrelas».
Adiamos durante os nossos quatro anos e meio de existência este tipo de classificações porque achavamos que só com uma escrita regular de críticas e crónicas cinematográficas nos permitia atingir a qualidade suficiente para podermos avaliar o trabalho de outrem por este método. Sentimos que esse tempo chegou.

Fiquem, então, atentos às nossas escolhas, esperando (como é óbvio) o vosso olhar crítico.


28 de dezembro de 2007

"National Treasure: Book of Secrets" por Ricardo Clara

Ben Gates (Nicholas Cage), uma espécie de Indiana Jones dos tempos modernos, que une a aventura da descoberta à história norte-americana, regressa para a busca de um novo tesouro.
Em "National Treasure", o protagonista, ajudado por Abigail Chase (Diane Kruger) e Riley Poole (Justin Bartha) partem em busca de um tesouro cujo mapa esteve durante séculos escondido nas costas da Declaração da Independência dos EUA. Agora, em "National Treasure: Book of Secrets" / "O Tesouro: Livro dos Segredos", a mesma equipa, reforçada com os pais de Ben, Patrick (Jon Voight) e Emily Appleton (Helen Mirren), iniciam uma incessante procura da mítica Cidade de Ouro, cujo segredo remonta ao tempo dos nativos americanos, e que o tetravô de Ben perdeu a vida para o defender. Mitch Wilkinson (Ed Harris), caça-tesouros de profissão, lança um engodo para obrigar a família Gates a iniciar essa pesquisa: afirma que esse mesmo tetravô foi um dos conspiradores da morte de Abe Lincoln, no séc. XIX, o que despoleta a caça para limpar o nome da família.

É mais um filho da febre da aventura histórica, dos romances de Dan Brown, entre inúmeros outros exemplos, e uma continuação do original de 2004. Jon Turteltaub regressa com a mesma fórmula, que procura e quase consegue preencher aquilo a que se propõe: ser um bom entretenimento, assente em factos históricos, obviamente manipulados, recorrendo à fórmula da descodificação de pistas para encontrar o tesouro. Falha, porque é uma cópia integral do primeiro, e de "The Da Vinci Code", e de todas as fitas que se têm produzido nessa matéria. É entretenimento razoável, feito por norte-americanos, para norte-americanos, exacerbando a pátria, a bandeira, a águia, Washington, a Biblioteca do Congresso, o Monte Rushmore, e todos os lugares comuns do erário histórico dos EUA. Falha, porque Justin Bartha é fraco, e porque quer copiar muito do que se viu na trilogia Indiana Jones (a sequência da descoberta da Cidade de Ouro é decalcada da descoberta do Santo Graal em "Indiana Jones and the Last Crusade" - Steven Spielberg, 1989), com os mesmos riscos, as mesmas contrariedades, as mesmas falas. Argumento inverosímel, duração excessiva, casting de qualidade para realização de baixa técnica. E a certeza de uma terceira parte.

Título Original: "National Treasure: Book of Secrets" (EUA, 2007)
Realização: Jon Turteltaub
Argumento: Cormac Wibberley e Marianne Wibberley
Intérpretes: Nicolas Cage, Diane Kruger, Jon Voight e Helen Mirren
Fotografia: John Schwartzman e Amir Mokri
Música: Trevor Rabin
Género: Acção / Aventura
Duração: 124 min.
Sítio Oficial: http://disney.go.com/disneypictures/nationaltreasure

27 de dezembro de 2007

"The Invasion" por Ricardo Clara

Do romance de Jack Finney, The Body Snachters, surgiram vários filmes e remakes, desde o original "Invasion of the Body Snatchers" de Don Siegel (1956), ao homónimo de Philip Kaufman (1978) ou o fraco "The Puppet Masters" (Stuart Orme, 1994). Tónica dominante em todas as abordagens, uma invasão alienígena que pretende tomar de assalto o Planeta Terra, dominando a opção por clones que substituiriam os originais.
A jusante, um argumento que se adapta ao passar dos anos, fruto de uma visão quase apocalíptica de invasões e ataques, num decalque de política interna (desde a caça às bruxas do McCarthismo dos anos 50, até á Guerra Fria), que oferece, a cada adaptação, a possibilidade de importar estórias antigas a situações actuais.

"The Invasion" / "A Invasão", não fugiu a estas premissas. Carol Bennell (Nicole Kidman) é uma psiquiatra de Washington que começa a ficar alarmada quando Wendy Lenk (Veronica Cartwright, presente na versão de 1978), uma sua paciente, lhe afirma que o seu marido já não é o mesmo. No fundo, ter-se-ia alterado por completo a personalidade dele, sendo-lhe uma pessoa estranha. Carol, acicatada por este aviso, liga este desabafo à estranheza que lhe causou o regresso do seu ex-marido Tucker Kaufman (Jeremy Northam) e o súbito interesse pelo filho de ambos, Oliver (Jackson Bond). Chamada a casa de um cônsul checo nos EUA, a par de Ben Driscoll (Daniel Craig), com quem encetara uma relação amorosa, confirma as suas piores suspeitas e encerra-se numa luta entre o resgate do filho e o sono, momento em que a levaria a entrar num estado absentista de emoções e de controlo do próprio corpo.

Fruto de rodagens complicadas e atribuladas, "The Invasion" vê a luz do dia pela mão de Oliver Hirschbiegel ("Der Untergang", 2004), polvilhado com opções duvidosas e um estilo desfasado da realidade do argumento. Aproveita, claro está, a Guerra do Iraque para inserir o olhar crítico no filme, mas nota-se - até pela própria montagem de baixa qualidade - muitas dúvidas no rumo a dar ao filme. Não só se queda pelo unanimismo nesta abordagem, como peca pela representação muito incerta de Nicole Kidman, que nunca conseguiu dar o seu cunho pessoal à personagem, não chegando sequer a ser credível toda a fase onde finge ser uma espécie de zombie que não sente emoções, perdendo-se em tiques e olhares que não convencem.
Por outro lado, "The Invasion" sofre muitas vezes com algum experimentalismo de Hirschbiegel, injustificado numa película desta natureza, de planos e iluminação que, por não ser constante, e por não ter uma montagem adequada, resulta em manifesta desproporção. Continua em alta o original de Don Siegel, pelo que é preferível dar um salto aos anos 50, do que apreciar esta nova abordagem.


Título Original: "The Invasion" (EUA, 2007)
Realização: Oliver Hirschbiegel
Argumento: Jack Finney e Dave Kajganich
Intérpretes: Nicole Kidman, Daniel Craig e Jackson Bond
Fotografia: Rainer Klausmann
Música: John Ottman
Género: Ficção Científica / Thriller
Duração: 99 min.
Sítio Oficial: http://theinvasionmovie.warnerbros.com

26 de dezembro de 2007

Programação «rasca»

A programação televisiva desta quadra natalícia foi de uma pobreza enorme, no que aos filmes concerne.
Do insosso "Polar Express" na RTP 1 (que de qualquer modo ainda se adequa à época), só voltamos a ter notícias do cinema às 01:00 do dia seguinte, com a comédia "National Lampoon's Christmas Vacation", uma oferta muito pobre da estação pública. Aliás, só mesmo "Charlie and the Chocolate Factory" salvam a honra do canal, apesar da transmissão só se efectuar esta noite (22:25h), tendo o iluminado programador desta RTP decidido exibir o adequadíssimo "Harlod & Kumar Go to White Castle", com o belo título português de "Grande Moca, Meu".
Na SIC, a repetição de "Shrek", sempre uma boa aposta, apesar de se repetir (e convenhamos que estar constantemente a exibir os mesmos filmes nas mesmas alturas é de uma falta de imaginação tremenda), "The Incredibles" (apesar da dobragem para português) selaram as opções, ainda que versadas para o cinema de animação, e logo após o Jornal da Noite "War of the Worlds", uma tacada certeira, uma estreia televisiva, com o handicap de ser um filme banal (mas aqui o gosto não influi na escolha) e de ter uma tradução muito pobre, por vezes ridícula.
A TVI também apostou na animação com "Chicken Little" (outra vez dobrado) e em "Fantastic Four", este último uma clara segunda escolha numa tarde de Natal.
Foi uma programação muito fraca, com muitas opções duvidosas, onde se destacou um filme de primeira linha e um punhado deles de quinta categoria. Ao apontar as baterias para imbecilidades como «famílias superstar» e telenovelas de fraca qualidade, em plena época natalícia, as televisões nacionais demonstram uma clara insuficiência nos seus quadros programadores e um desinteresse por alguns produtos que muito bem podiam aparecer por esta altura - desde filmes recentes e que se adequem às festividades, podendo inclusive recorrer à profusão enorme de séries televisivas que tanta aceitação tem tido nos dias de hoje.

24 de dezembro de 2007

"Wedding Daze" por António Reis

O drama das comédias românticas é que em geral não são comédias e raramente são românticas. Apesar da receita ter funcionado em filmes como "O Amor Acontece" e "Notting Hill", excepções que, pela qualidade, se destacam da mediocridade que costuma ser a norma deste género. Fazer comédia inteligente é cada vez mais difícil até porque a inspiração não abunda e por isso é bem mais fácil concatenar piadas parvas de gosto duvidoso. Fazer de uma história um pretenso romance é demasiado difícil e inteligente, pelo que as auto-designadas comédias românticas são histórias previsíveis e estereotipadas. Comparar, por exemplo, “O Amor Acontece” com "Dois Estranhos, Um Casamento" é a melhor forma de se perceber como sob o mesmo género é possível encontrar dois resultados absolutamente opostos. Talvez que à produção americana falte aquele jeito british de dar consistência às personagens e de utilizar com subtileza o humor, exactamente o que mais falta faz a este filme a que o título português e a capa torna o final ainda mais previsível.
"Wedding Daze" é o exemplo típico de filme cocktail onde se misturam os clichés mais evidentes - situações caricaturais na loja de lingerie, no assalto à loja de smokings, na cena de esquadra de polícia, um sobrenatural post-mortem, um noivo apaixonado travestido de cupido, um mâitre de restaurante incapaz de acertar com a deixa – a que falta um fio condutor que tenha alguma verosimilhança. É um filme para ocupar tempo e comer pipocas a que os espectadores na sessão a que assisti se comportavam à altura do filme: atendiam telemóveis, mandavam sms, atiravam pipocas, aos parceiros da frente, e faziam frequentes saídas para fins não esclarecidos mas eventualmente escatológicos.
Distribuído em DVD percebia-se a lógica, mas ter direito a distribuição comercial quando faltam salas a tantos bons filmes é caso para deixar um crítico perplexo. A comédia é de facto dos géneros mais problemáticos, é difícil fazer boa comédia, e é difícil ao espectador ver má comédia.



Título Original: "Wedding Daze" (EUA, 2006)
Realização: Michael Ian Black
Argumento: Michael Ian Black
Intérpretes: Jason Biggs, Isla Fisher, Joe Pantoliano
Fotografia: Dan Stoloff
Música: Peter Nashel
Género: Comédia, Romance
Duração: 90 min.

"Letters from Iwo Jima" por Nuno Reis

1941 teve um dos Natais menos alegres da História nos Estados Unidos. Duas semanas antes da festa natalícia a frota estacionada em Pearl Harbor foi atacada pela aviação japonesa. Enquanto na Europa se lutava por vidas os japoneses lutavam pelo domínio dos mares, estendendo a sua hegemonia asiática até às costas americanas. Os EUA trocaram o seu papel de apoiantes dos Aliados para serem uma das facções em guerra, no confronto mais mortífero e assustador de sempre. Com a guerra recuperaram da Grande Depressão e recuperaram a sua moral, tornaram-se o maior império mundial, posição que ainda mantêm. Mas o que se esconde dessa guerra? O que foi realmente feito e o que foi inventado?
Numa experiência revolucionária de cinema Clint Eastwood apresenta-nos a batalha de Iwo Jima vista pelos olhos de ambas as facções. Em "Flags of Our Fathers" é revelada uma conspiração governamental para moralizar o povo, convencendo-os do valor das tropas que lá combateram. Em "Letters from Iwo Jima" é apresentado o ponto de vista dos soldados japoneses, agora também eles vítimas da guerra que despoletaram.
Um Japão acabado de sair dos tempos feudais, quando a honra é mais importante do que a vida, irá aprender que é mais útil morrer lutando do que suicidar-se com honra. Sabem que a guerra está perdida, mas por cada dia que mantenham o inimigo longe daquela ilha as suas crianças no arquipélago principal poderão brincar e sorrir mais um dia.
Filmado quase integralmente em japonês e recorrendo a estrelas do país nipónico, "Letters from Iwo Jima" é dos melhores filmes de guerra alguma vez feitos. O seu impacto visual, o som, a direcção de actores, a realização, o rigor histórico e a mensagem transmitida criam uma obra-prima sem paralelo na história recente. Os americanos não são mais um exército todo-poderoso enfrentando um inimigo sem rosto nem sentimentos, os papeis foram invertidos e agora é pedido ao público que também inverta o seu ponto de vista. Apesar de Pearl Harbor ser um acto injustificável foi tomado por outros, quem tomou essa decisão não está a tentar sobreviver às bombas que caem em Iwo Jima. O espectador, americano ou não, preocupa-se com Saigo, Shimizu e todos os outros. Japoneses, inimigos, mas acima de tudo seres humanos e homens corajosos que estão a defender o seu país. Ao ver este filme quase se deseja que o rumo da guerra tivesse sido outro.

Clint Eastwood com a idade - e as dezenas de filmes em que actuou - aprendeu tudo o que era preciso para ser um grande realizador. Analisando a sua carreira como realizador no século XXI, não fica mal dizer que é o maior realizador vivo americano. Em cada filme supera tudo o que já fez, mostra ainda mais capacidades e não parece ter atingido o seu limite. Aguardamos ansiosamente mais um filme, mais um marco na história do cinema.




Título Original: "Letters from Iwo Jima" (EUA, Japão, 2006)
Realização: Clint Eastwood
Argumento: Iris Yamashita, Paul Haggis
Intérpretes: Ken Watanabe, Kazunari Ninomiya, Shido Nakamura, Yuki Matsuzaki, Hiroshi Watanabe
Fotografia: Tom Stern
Música: Kyle Eastwood , Michael Stevens
Género: Drama, Guerra
Duração: 141 min.
Sítio Oficial: http://iwojimathemovie.warnerbros.com/

"Lions for Lambs" por Nuno Reis

Símbolo do cinema liberal americano, Robert Redford é uma estrela que continua a brilhar. O seu mais recente trabalho é uma sátira política sobre a Guerra ao Terror e os seus efeitos na sociedade americana. A história desenrola-se simultaneamente em três ambientes. Em Washington o jovem senador Jasper Irving (Tom Cruise) apresenta uma nova estratégia militar à jornalista Janine Roth (Meryl Streep). Segundo ele os americanos deverão controlar uma determinada zona para impedir a reorganização dos rebeldes. No outro extremo do país um professor universitário (Robert Redford) tenta motivar um dos seus talentosos alunos a ser algo mais que um derrotista. Finalmente, no Afeganistão, um batalhão arranca com o famoso plano. Mas o voo que levaria as tropas para essa região é atacado e dois dos soldados caem. Sozinhos numa terra que deveria estar deserta, depressa se vêem rodeados de inimigos e terão de lutar de forma mais próxima e intensa de que alguma vez pensaram.

No mundo político temos o ponto de vista dos comandantes. Tom Cruise não é mais o revoltado soldado nascido a 4 de Julho, agora é um militar condecorado que seguiu a vida política. Indiferente às vidas desperdiçadas em combate, pretende usar a guerra para ganhar a confiança popular e atingir as suas ambições. Por si só este trecho é um pouco cansativo. Não é suficientemente incriminatório para marcar o público.
A parte militar revela os verdadeiros heróis, peões inocentes a serem sacrificados lentamente num longo jogo de vida ou morte. Está bem filmada mas não se distingue em nada dos outros filmes de guerra. Dá um final marcante ao filme, especialmente por mostrar o contraste entre o que é dito em Washington e o que é feito no terreno. As decisões tomadas em Washington são feitas para salvar a reputação, as decisões tomadas em batalha são feitas para salvar vidas.
Finalmente, no ambiente estudantil, temos a nova geração e o seu ponto de vista. Jovens que não sabem o que é estar num cenário de guerra a opinar sobre o que deveria ter sido feito e a criticarem o seu governo e o seu país. Infelizmente isso passa-se em qualquer país, mas apenas quando vemos todos os ângulos da situação percebemos como essas atitudes e tomadas de posição podem ser injustas. É o melhor segmento do filme por mostrar o que a sociedade culta pensa de tudo isto, por apresentar debates em que opiniões se confrontam e os actos correspondem ao discurso. É o único pedaço que por si só faz a diferença.
Estes três pedaços de vidas combinam-se numa polémica crítica à administração Bush e aos políticos. Homenageia o herói desconhecido que arrisca (e perde) a vida numa batalha que foi treinado a aceitar como fundamental. E acima de tudo revela o que o futuro do país pensa disto e como se prepara para resolver esta embrulhada.
O cinema com este tema é um reflexo do confronto. Por muito bem que pareça estar já não avança, tornou-se rotineiro. Seria conveniente aos americanos procurarem novos temas e novas guerras.




Título Original: "Lions for Lambs " (EUA, 2007)
Realização: Robert Redford
Argumento: Matthew Michael Carnahan
Intérpretes: Robert Redford, Meryl Streep, Tom Cruise, Michael Peña, Andrew Garfield, Derek Luke
Fotografia: Philippe Rousselot
Música: Mark Isham
Género: Drama, Guerra
Duração: 88 min.
Sítio Oficial: http://www.lionsforlambsmovie.com/

23 de dezembro de 2007

"Los Abandonados" por António Reis

Nacho Cerdà é um dos melhores realizadores de curta-metragem do género fantástico e de terror. "Aftermath", "The Awakening" e "Genesis" são 3 bons exemplos de como a curta-metragem é um excelente cartão de visitas de um cineasta com talento. Na passagem à longa-metragem Nacho Cerdà contou com o suporte financeiro da Filmax, que não poupa meios financeiros e técnicos para se tentar guindar a um lugar de destaque na distribuição espanhola e internacional. Além de Nacho Cerdà a Filmax apostou em Brian Yuzna, Jaume Balagueró e Paco Plaza entre outros, para criar uma label especificamente para o fantástico. Se no caso de Balagueró e Plaza os resultados têm sido muito bons, as outras apostas não têm sido tão bem sucedidas. E com Nacho Cerdà tão pouco o dinheiro conseguiu fazer o milagre de tornar convincente este thriller psicológico. Não que a culpa seja do cineasta uma vez que a direcção é o melhor do filme. O argumento que ele co-escreve com Richard Stanley (autor de um muito interessante "Hardware" e de um menos interessante "Dust Devil") e com Karim Hussain (conhecido do Fantas por "La belle bête") não tem consistência lógica que suporte a narrativa. Como tem sucedido nos últimos anos o leste europeu, e neste caso a Bulgária, tem sido o palco de rodagem de inúmeros filmes, seja por estratégias de co-produção seja por questões de orçamento.
O mesmo ocorreu com "Los Abandonados", em que nas planícies geladas da Bulgária se recria uma pretensa Rússia inóspita e desertificada. O retorno à aldeia natal de uma russa há longos anos a viver nos Estados Unidos, é o leit motif deste thriller. Afinal o regresso às suas raízes não é um nostálgico regresso à infância mas o reencontro com os seus próprios fantasmas. Na casa deserta e semi-destruída Marie descobre que os mortos ainda assombram a casa, que os gritos das crianças levadas ainda ecoam pelos corredores, e o sangue ainda escorre das paredes. Nem o tempo apagou os vestígios, nem a memória esqueceu os traumas da infância. O que teria sido uma brilhante curta-metragem prolonga-se com lentidão por 100 minutos. Na ausência de acontecimentos que preencham o filme, o cineasta é obrigado a usar todo o seu talento para criar tecnicamente picos de intensidade dramática, utilizando de forma soberba o som como um dos "personagens" principais.
Distribuido em Portugal pela Lusomundo foi um dos filmes que passou mais desapercebido nesta temporada e nem a presença em festivais ajudou a criar algum interesse. De Nacho Cerdà espera-se muito melhor, mas esta estreia foi tudo menos auspiciosa.


Título Original: "Los Abandonados" (Bulgária, Espanha, Reino Unido, 2006)
Realização: Nacho Cerdà
Argumento: Nacho Cerdà, Karim Hussain, Richard Stanley
Intérpretes: Anastasia Hille, Karel Roden
Fotografia: Xavi Giménez
Música: Alfons Conde
Género: Horror, Mistério, Thriller
Duração: 99 min.
Sítio Oficial: http://www.theabandonedmovie.com/